Anitta, Huck e Bonner foram espionados a mando de Bolsonaro
Foto: Instagram/realbonner; Manoella Mello – 16.dez.2022/Globo; Luciola Villela – 25.fev.2023/Riotur; Joe Raedle – 3.fev.2023/Getty Images North America/GettyImages via AFP
Os apresentadores Luciano Huck e Willian Bonner, da TV Globo, a cantora Anitta, participantes do reality show Big Brother Brasil e até o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tiveram dados fiscais acessados de forma irregular, mostra documento inédito da Receita Federal a que a Folha teve acesso.
Os nomes desses contribuintes constam da lista apresentada em abril de 2021 pela Receita Federal ao TCU (Tribunal de Contas da União) no curso de uma investigação sobre consultas sem justificativa a dados fiscais.
Os casos ocorreram de 2018 a 2020. Embora coincidam na data com os acessos irregulares feitos pelo então chefe de inteligência da Receita contra desafetos da família Bolsonaro (2019), as irregularidades apuradas não têm relação direta com esse episódio.
Diferentemente do caso de Ricardo Feitosa (o chefe da inteligência que acessou dados do procurador do caso das “rachadinhas” e de dois políticos rompidos com a família Bolsonaro), nenhum dos oito servidores investigados ou punidos fazia parte da cúpula da Receita.
A defesa de Feitosa nega que ele tenha cometido violação de sigilo.
A lista entregue ao TCU tem agentes administrativos, tecnologista, auxiliar de serviços, assistente técnico e apenas um auditor fiscal.
Essa facilidade de acesso a dados sigilosos e que só podem ser vasculhados mediante motivação legal levou a auditoria do TCU a concluir haver falhas na prevenção de acessos imotivados a dados fiscais de pessoas politicamente expostas (conhecidas pela sigla PEPs).
“Não há mecanismos automatizados (além do controle de perfis) que previnam tais acessos indevidos, ou que garantam que a Corregedoria do órgão apure e puna eventuais abusos de auditores fiscais”, afirma acórdão aprovado no fim do ano passado.
O Fisco abriu duas investigações sobre possível acesso irregular a dados de Bolsonaro, de acordo com a lista. Um dos responsáveis foi o agente administrativo Odilon Alves Filho, que foi suspenso por 60 dias e pagou multa de R$ 5.000 para encerrar uma ação penal contra ele.
A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro também teve os dados acessados irregularmente por um agente operacional, punido com uma suspensão de 90 dias. Ele também visualizou informações do ex-ministro Ciro Gomes (PDT).
Os dois casos ocorreram durante a eleição de 2018, quando Bolsonaro e Ciro eram candidatos à Presidência.
Um analista tributário também foi suspenso por 40 dias por ter entrado indevidamente nos dados fiscais do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e de sua mulher, Fernanda Bolsonaro, em janeiro de 2019. Ele foi punido com 40 dias de suspensão.
A apuração sobre os supostos acessos imotivados a dados de Bonner, Huck e Anitta ainda não foi concluída.
Um assistente técnico administrativo da Vigilância Aduaneira de Santana do Livramento (RS) é suspeito de ter pesquisado, de 2018 a 2020, dados deles e de mais 20 artistas, incluindo, segundo a listagem da Receita, ex-integrantes do Big Brother Brasil, reality show da TV Globo.
Os dados enviados pela Receita mostram ainda que abertura de investigação contra um auxiliar de serviços diversos de Belo Horizonte sob suspeita de emitir irregularmente 300 relatórios fiscais em menos de dois minutos. Um agente administrativo também é suspeito de ter acessado dados do então deputado federal Rôney Nemer (DF), de acordo com o relatório.
Os acessos ilegais a dados da Receita entraram na mira do TCU em 2019 após a divulgação de uma apuração da Receita sobre o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), e sua mulher, a advogada Guiomar Mendes.
A Receita negou ter havido consultas irregulares aos dados fiscais do magistrado, afirmando que o ministro foi alvo de apuração preliminar interna que não evoluiu para um procedimento formal de fiscalização.
A fim de apurar a proteção de dados de políticos, juízes e promotores, o TCU realizou uma auditoria na Receita. Um dos passos foi questionar o Fisco sobre a ocorrência de acessos indevidos e como foram tratados.
Ao TCU a Receita afirmou que adotar travas para o acesso a dados de PEPs dificultaria o dia a dia das fiscalizações, além de criar regras de acesso distinta a um grupo específico de contribuintes.
O ministro Bruno Dantas, relator do caso e hoje presidente do TCU, não concordou com o argumento e votou pela determinação ao Fisco para que, em quatro meses, apresente controles internos para impedir acessos imotivados de PEPs. O acórdão foi aprovado em dezembro do ano passado no plenário.
“Entendo que eventuais limitações de sistema não devem servir como justificativa para não implementar controles necessários ao cumprimento de dever legal de resguardo do sigilo fiscal, de qualquer cidadão que seja. É dizer, o sistema deve se amoldar ao cumprimento do dispositivo legal, e não o contrário.”
O voto de Dantas mostra ainda lacunas no monitoramento do trabalho de auditores fiscais. Ele afirma que é baixa a exigência de justificativa para acesso a dados do sistema da Receita.
“Sempre que qualquer servidor da Receita acessa o portal da DIRPF [Declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física], ele deve informar a justificativa para o acesso (programação, outros etc.).Ocorre que essas justificativas são genéricas, o que pode dificultar que o supervisor realize uma supervisão efetiva ao receber o alerta”, escreveu a auditoria do TCU.
“Por exemplo, se um servidor da área de programação de fiscalizações informar ‘programação’ na justificativa do acesso, esse acesso estará aparentemente correto/motivado, mas tal justificativa não permite ao supervisor verificar a regularidade do acesso, o que poderia ser feito, por exemplo, caso fosse requerido também o registro do número do dossiê/processo que fundamentou a consulta efetuada.”
A auditoria também questiona o conceito de “autoridade tributária” adotado na Receita, segundo a qual, de acordo com o TCU, a atuação de um auditor não é alvo de revisão. Ele transcreveu acórdão de 2020 que aponta fragilidades da prática.
“Conforme esse conceito, os atos praticados pelo auditor-fiscal da Receita na condição de ‘autoridade tributária’ normalmente não são revisados, nem hierarquicamente, nem por pares. Ressalte-se que este conceito não possui previsão legal e deriva-se de uma construção jurídica interna e avalizada por estudos realizados pela Diretoria de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional”, afirma o tribunal.
“A equipe também constatou essa prática em reuniões presenciais com integrantes da Copes, nas quais foi afirmado que os auditores-fiscais se declaram autoridades e que os atos emanados internamente dentro das respectivas coordenações (Copes e Cofis) não poderiam ser revistos, tendo em vista que ‘o que autoridade tributária escreve não pode ser alterado’. Ou seja, inexiste uma reanálise do mérito no processo de fiscalização.”