Bolsonaro tem avalanche de crimes no caso das joias
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O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem sustentado que não houve “ilegalidade” na tentativa de entrar no País com joias de valor milionário trazidas da Arábia Saudita sem o pagamento do imposto devido. Especialistas consultados pelo Estadão ponderam que os fatos ainda precisam ser elucidados por meio de investigação, mas listaram crimes descritos no Código Penal que podem enquadrar a conduta do ex-chefe do Executivo e de membros de seu governo.
Como mostrou o Estadão, Bolsonaro atuou em diversas frentes para reaver um pacote de joias avaliado em 3 milhões de euros (cerca de R$ 16,5 milhões), presenteado pelo regime saudita e apreendido pela alfândega no aeroporto de Guarulhos. O conjunto inclui um colar e um par de brincos para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, além de um relógio, uma escultura de cavalo com as patas quebradas e um anel. O ex-presidente mobilizou dois ministérios – das Relações Exteriores e de Minas e Energia -, a Receita Federal e também atuou por conta própria para tentar recuperar os bens, sem sucesso.
Um segundo pacote de bens valiosos passou despercebido pelos servidores da alfândega e está no acervo pessoal do ex-presidente, conforme ele mesmo admitiu.
Segundo especialistas, uma eventual investigação deve buscar entender se e de que forma Bolsonaro usou a estrutura do Estado para recuperar as joias; além disso, se a intenção do ex-presidente era de fato manter os bens consigo. O criminalista André Lozano explica a importância de se elucidar a motivação do presente. “Tem de ver se a Arábia Saudita deu esses bens na qualidade de governo ou de forma particular. Se foi de forma particular, tem de ver qual a motivação, porque ninguém recebe um presente de R$ 16 milhões. Eventualmente, se tiver algum interesse escuso da Arábia Saudita para dar esses bens, pode se pensar na possibilidade de corrupção passiva. Mas tudo ainda é embrionário, são conjecturas”, diz.
Como mostrou o Estadão, os auditores da Receita ofereceram a alternativa de declarar os bens como patrimônio do Estado brasileiro, o que livraria do pagamento de imposto, mas a comitiva brasileira declinou. “Isso tudo vai lá para a primeira-dama”, disse, na ocasião, o ex-ministro Bento Albuquerque.
Lozano também aponta a possibilidade, mediante investigação, do enquadramento das condutas nos crimes de peculato (quando um cargo público é usado para tomar posse de dinheiro ou bens móveis), advocacia administrativa (quando um funcionário público usa o cargo para patrocinar interesse privado) e descaminho (o que popularmente é conhecido como “contrabando”).
Crime: Art. 312 (peculato): Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
Situação: Bolsonaro tentou reaver as joias, mas não indicou claramente se elas iriam para o acervo público da União. Ao ouvir essa opção no aeroporto, Bento Albuquerque declinou. Um segundo pacote de joias está no acervo pessoal do ex-presidente.
Crime: Art. 321 (advocacia administrativa): Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário.
Situação: Bento Albuquerque, Itamaraty e o ex-chefe da Receita Federal, Júlio Cesar Vieira, encaminham ofícios pedindo a liberação dos bens. Se ficar comprovado que as joias eram para o acervo privado de Bolsonaro, pode ficar configurada advocacia administrativa.
Crime: Art. 334 (descaminho): Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.
Situação: Servidores do Ministério de Minas e Energia tentaram passar pela alfândega brasileira sem declarar o conteúdo dos pacotes – joias que valem milhões de reais – e, consequentemente, sem pagar o imposto devido.
A especialista em Direito Penal Marina Pinhão Coelho afirma Bolsonaro deveria ter documentado o recebimento das joias à União, já que estava na condição de chefe de Estado quando as recebeu. “São bens que deveriam ser devidamente declarados ao País e tutelados como patrimônio do Estado brasileiro”. No ato de apreensão, foi dada a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas a comitiva liderada pelo então ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e poderiam ser liberadas.
“Os tipos penais concretos só conseguimos apontar a partir de análises mais detidas dos documentos do caso, mas pode haver crimes tributários, crimes de falsidade e crimes praticados por funcionários públicos contra o patrimônio comum do Estado”, afirmou Marina Pinhão Coelho.
A criminalista Marina Brecht afirma que a conduta do presidente também poderia se enquadrar, em tese, na lei de abuso de autoridade. O texto descreve, em seu 33º artigo, o ato de “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. Bolsonaro teria feito isso quando impôs a ministros e ao secretário da Receita Federal que pressionassem pela liberação das joias.
Segundo Marina, a investigação precisa desvendar se há vínculo de Bolsonaro com a tentativa de entrada ilegal com as joias. Após o caso ser revelado pelo Estadão, o ex-presidente passou a dizer que “não pediu, nem recebeu” os presentes do regime saudita. “É preciso demonstrar se existia algum tipo de conluio, plano comum entre todos eles (o ex-presidente, o ministro Bento Albuquerque e os assessores). Existem sinais que indicam esse vínculo, que vão precisar ser melhor esclarecidos durante a investigação”, afirma.
O decreto nº 4.344, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002 e que trata da preservação “da memória presidencial como um todo num conjunto integrado”, diz que o presidente titular de determinado item deve “preservá-lo e conservá-lo de acordo com a orientação técnica da Comissão Memória dos Presidentes da República, autorizando o acesso a eles”. O texto determina, ainda, que trocas do local de guarda do acervo devem ser comunicadas ao Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República.
O decreto, contudo, é amplo e pode deixar interpretações em aberto. A decisão mais incisiva sobre o tema veio do Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou, em 2016, que todos os presentes recebidos “por ocasião das visitas oficiais ou viagens de Estado ao exterior, ou das visitas oficiais de chefes de Estado estrangeiros ao Brasil” devem ser incorporados ao acervo público.
O tribunal lista exceções: “Itens de natureza personalíssima (medalhas personalizadas e grã-colar) ou de consumo direto (bonés, camisetas, gravata, chinelo, perfumes, entre outros)”.