Diplomacia brasileira comemora volta de Lula
Foto: Pedro França/Agência Senado
Após 12 anos no exterior, a embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores (MRE), retornou ao Brasil, no fim de 2022, para se tornar a primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da diplomacia brasileira. Ela vem exercendo a função com naturalidade e é categórica ao comentar sobre a guinada do Brasil na política internacional com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Ex-chefe de gabinete do ex-chanceler Celso Amorim, que deu o tom da diplomacia nos dois primeiros mandatos do atual chefe do Executivo, a embaixadora afirma que é a prioridade da política externa é a integração regional.
Mas bandeiras daquela gestão estão de volta: o multilateralismo, a reaproximação com a África, a volta da cooperação Sul-Sul e uma reforma no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), entidade que o Brasil ajudou a criar pós-Segunda Guerra Mundial, e até hoje o país é o primeiro a falar nas Assembleias Gerais.
“Não reconhecemos, não damos legitimidade a nada que seja fora do multilateralismo, com muito realismo. Fora do multilateralismo, tem força bruta. Isso não tem respaldo no direito internacional”, frisa. Ela destaca que a questão ambiental também será prioridade nesse sentido, porque, hoje, “ela está representada em todos os setores, no comércio, em todas as relações”.
“A palavra-chave é sustentabilidade. O desenvolvimento sustentável já está perdendo um pouco de força para a transição energética. Mas todos os conceitos são bem-vindos”, destaca.
Em relação à reforma do Conselho de Segurança, destaca que o Brasil, sempre que pode, defende e defenderá essa agenda. “Entendendo que, no fundo, tudo precisa ser reavaliado para garantir uma representatividade real nas Nações Unidas”, diz.
Dos 15 membros do Conselho, apenas cinco (Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido) possuem assento permanente e poder de veto.
A embaixadora confessa que se apropriou de um termo de um amigo estrangeiro para definir os quatro anos da diplomacia brasileira, que esteve muito ideologizada sob a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando a orientação de governo ficou “um pouco fora das linhas normais da política externa”. “Um eclipse.” Essa é a definição da embaixadora sobre esse período em que o Brasil “saiu de cena” e perdeu o protagonismo global.
Com isso, ela reforça os discursos de Lula e do chanceler Mauro Vieira, que está no comando do Itamaraty pela segunda vez, sobre o retorno do país para o cenário global, como protagonista. “O Brasil está de volta e contribuirá, como sempre fez, para que o mundo fique um pouco melhor”, afirma.
Com passagens em várias embaixadas europeias e atuações como delegada do país junto à Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), e como representante do Brasil junto à Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Maria Laura da Rocha conta que uma das orientações de Mauro Vieira no novo cargo é ampliar a presença de mulheres nos quadros do Itamaraty.
O processo é lento, segundo ela, pois é preciso aguardar os avais dos governos internacionais, o agrément, antes de submeter os nomes de indicados à sabatina do Senado Federal.
Conforme dados do MRE, existem, atualmente, 43 mulheres e 176 homens com o cargo de ministro de primeira classe, os embaixadores. Dentre eles, exercem cargos de chefia 19 diplomatas do sexo feminino (44,2% do total de mulheres), enquanto os embaixadores somam 111 (63,1% do total de homens).
“Não dá para apresentar todo mundo junto. Mas eu acho que teremos na Europa, até meados do ano, muitas mulheres em cargos importantes”, destaca. Ela ressalta que, apesar de não se sentir negra, e, sim, mestiça, está sempre engajada no debate sobre a inclusão e o combate à discriminação. “Como a nossa legislação autoriza a autodefinição, cada um se define como quiser”, diz.
A secretária minimiza a polêmica em torno da volta da exigência de visto para os turistas de países desenvolvidos, como Estados Unidos, defende o princípio da reciprocidade, como forma de valorização do país na política internacional. E, em relação à polêmica do silêncio sobre Nicarágua, ela foi sucinta: “Partindo daquele princípio que nós temos uma voz que é escutada, a gente tem que usar. A gente não tem que ficar falando com a voz dos outros.”
As declarações da embaixadora ocorreram antes do adiamento da viagem de Estado do presidente Lula à China.
Para ela, o fato de o Brasil ter como principais parceiros comerciais o país asiático e os Estados Unidos, que estão em lados opostos, “é a melhor posição possível”.
Aproveitando o fato de março ser o mês das mulheres e a senhora ser a primeira mulher a assumir o cargo de secretária-geral do Itamaraty, como estão sendo esses primeiros meses de governo? Quais são os desafios quando fica no comando durante as viagens do ministro?
Eu já assumi várias vezes. O ministro tem viajado muito. Sou funcionária da carreira diplomática há 45 anos. Fui chefe de gabinete do ministro Celso Amorim por três anos, entre 2008 e 2010, no final do segundo mandato do presidente Lula. Então, isso significa experiência na orientação da Casa. Mais do que comando, eu gosto de dizer orientação, porque a gente coordena o trabalho de colegas, homens e mulheres, que já têm experiência também. Eles estão sempre acrescentando ideias e formas de trabalhar em conjunto. O nosso ministro acredita nesse trabalho em conjunto. Nós todos aqui acreditamos.
Ainda na transição, o ministro falava muito em arrumar a casa e colocar o Brasil de volta no mundo. Como está esse processo?
Está indo muito bem, porque a casa é muito treinada. No Itamaraty, as chefias, tanto no Brasil como no exterior, são todas de diplomatas de carreira, então, nós temos mais ou menos, um treino parecido. Nós somos funcionários de Estado, independentemente do governo. Temos uma forma muito clara de trabalhar e, a partir da Constituição de 1988, ela ficou mais clara ainda, porque as linhas gerais da política externa estão previstas na Constituição.
Então, temos que seguir essa orientação legal, sem grandes dificuldades. A questão da casa é que, num determinado momento, tivemos um governo que colocou no comando da instituição um diplomata mais jovem, com menos experiência. O Ernesto Araújo (ex-chanceler), que assumiu a chefia do Itamaraty, e o próprio Carlos França, que veio depois, e fez um trabalho melhor, não tinham experiência de chefias.
Acho que isso ajudou a dificultar um pouquinho mais o trabalho e também uma orientação de governo que ficou um pouco fora das linhas normais da política externa. Independentemente de mudanças de governo, como diplomacia do Estado, ela tinha uma linha de continuidade que foi um pouco interrompida, com o país saindo de cena praticamente.
E, nas poucas vezes em que aparecia em cena, aparecia com uma postura que não era a tradicional, nem a correta e adequada da política.
Era mais ideológica…
É, e isso foi bem identificado no simples fato de que, com a vitória do presidente Lula, a própria comunidade internacional, tanto do mundo desenvolvido como do mundo em desenvolvimento, percebeu que o Brasil estava de volta. Essa frase dele, que ficou muito boa, a partir da participação do presidente eleito na Conferência (da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas — COP27), em Sharm el-Sheikh (no Egito), após o resultados das eleições, significa que sentiram a nossa falta, que estavam com saudades de nós. E nós estamos aqui, cheios de amor para dar.
Sentiu isso nas conversas com as embaixadas ou com os embaixadores?
Estive fora do país durante 12 anos. Eu chefiei quatro representações. Primeiro, fui embaixadora da Unesco, em Paris, depois, embaixadora da FAO, em Roma; depois, em Budapeste, na Hungria; e em Bucareste, na Romênia, até o fim do ano passado, quando fui designada para o cargo que assumi, em 1º de janeiro. Então, eu senti a diferença do trabalho lá fora. Quando cheguei a Budapeste, no início da mudança de governo, a partir de 2018, as pessoas já estranharam algumas coisas.
A senhora tem dito que trabalha para aumentar a presença das mulheres no Itamaraty. Sendo a primeira mulher, e negra, no cargo mais importante da pasta, é uma nova guinada dentro da diplomacia?
Eu não gosto dessa história de ser mulher e negra. Vou lhe explicar o porquê. Eu não me identifico como negra. Eu sou mestiça. E o que é que isso significa? Se alguém me falar que é negra, eu acho ótimo, não tenho nada contra. Mas eu sempre me comportei dessa forma e nunca fui discriminada. Você sabe que, nessa questão de um país mestiço, a tonalidade faz diferença. Isso eu aprendi com as lideranças negras num grupo de trabalho do qual participei durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Nós construímos um grupo de trabalho para propor políticas públicas para a valorização da população negra. E, nesse grupo, que durou dois anos e foi muito importante, eu aprendi muita coisa: a questão da invisibilidade do negro, de muita gente não se reconhecer como negro por insegurança. Mas, dependendo de onde você vem, é o normal.
Para mim, que nasci em Jacarepaguá (RJ) e estudei sempre em escola pública, o meu normal eram as pessoas como eu. Todo mundo parecia igual, mas porque eu estava nesse núcleo. Eu aprendi muito com as lideranças negras que participavam desse grupo de trabalho, que se preocupavam com a questão do racismo estrutural.
Começamos a ver a importância de colocar a figura do brasileiro negro, da brasileira negra na publicidade oficial, e isso foi uma política forte, porque toda a publicidade oficial, a partir daquele momento, tinha que ter a representatividade brasileira. Estava no edital. Tudo isso foram coisas que vieram desse grupo de trabalho, inclusive, a política de ação afirmativa no Instituto Rio Branco, com a criação de bolsas de estudo, projeto do qual eu participei também.
Eu não posso dizer sou mulher negra no Itamaraty, porque, senão, falam assim: você teve uma carreira ótima, tranquila, então, não tem discriminação. Aí eu lhe digo: é uma questão da tonalidade. Como a nossa legislação autoriza a autodefinição, cada um se define como quiser.
Sou a primeira mulher de fato (no cargo) que senta aqui. Eu acho que me chamaram porque eu sou conhecida. Trabalhei com o Celso Amorim e o Mauro Vieira. Eu fui convidada, não me ofereci para o cargo.
E vamos ter uma mulher no comando da Embaixada de Washington, uma das mais importantes…
Sim, vai ser a Maria Luiza Viotti. Ela foi embaixadora do Brasil em Berlim, nas Nações Unidas. Ela é muito experiente e brilhante. É ótima e podia ser secretária-geral ou ministra também.
A senhora está participando com sugestões de mais mulheres nas representações?
Sim. O ministro tem essa ideia de implementar essa política, foi uma instrução que ele recebeu do presidente da República, e ele tem convicção dessa necessidade também. Nós trabalhamos em conjunto nessa definição. Aliás, sempre foi assim a definição dos postos no exterior, à luz da disponibilidade dos cargos e do tempo de posto. Os nomes são levados ao presidente, e é ele quem decide.
E como está o processo de definição em outras embaixadas importantes? Em Paris, por exemplo?
Em Paris, já está definido, por exemplo, o embaixador. Será o embaixador Ricardo Neiva Tavares, que é um excelente diplomata. Foi assessor de imprensa do ex-ministro Celso Amorim. Temos uma equipe que se conhece e, felizmente, temos novos (integrantes) que são todos brilhantes também. Então, posso dizer que é um time forte, de diplomatas experientes, homens e mulheres.
E como as mulheres estão distribuídas no ministério?
O ministro tem, na assessoria do gabinete, cinco mulheres. Aqui nós temos sete. E, no comando da casa, há mulheres em todas as chefias. Entre as 10 secretarias da pasta, três são comandadas por mulheres. Nos departamentos, a maioria é mulher. Há mulheres em chefias de divisão e temos mulheres embaixadoras também.
O processo de encaminhamento e de concessão de agrément é demorado. Quando o presidente define quem ele quer mandar, nós comunicamos o país para saber se não há nenhuma dificuldade. É a prática diplomática. Isso caminha de acordo com o ritmo, o funcionamento de cada governo.
Por isso, não dá para apresentar todo mundo junto. Mas eu acho que teremos na Europa, até meados do ano, muitas mulheres em cargos importantes. No Itamaraty, atualmente, como ministros de primeira classe, que são embaixadores, nós somos 43 mulheres e 176 homens. Então, é óbvio que não pode ser a paridade.
Precisamos ter mais mulheres entrando na carreira diplomática, ou seja, fazendo concurso, e cursando academia diplomática, para poder seguir a carreira, e, assim, termos mulheres sempre na hora das promoções. É uma forma de você aumentar a representatividade, mas isso é um processo.
Com a polarização entre China e Estados Unidos, os maiores parceiros comerciais do Brasil, o país tem dificuldade de se posicionar nesse cenário?
Não tem dificuldade. O Brasil já se posicionou. Ele tem dois grandes países importantes como parceiros, comerciais e estratégicos. Está ótimo. Nós nos damos muito bem com os Estados Unidos e nos damos muito bem com a China.
É a melhor posição possível. O Brasil tem um bom relacionamento com os Estados Unidos e com a China, assim como tem com a União Europeia, e, agora, vai voltar a ter com a África, assim como tem com a Ásia, e, assim como tem, sobretudo, a prioridade da nossa integração regional.
Podemos dizer que é a volta da estratégia da cooperação Sul-Sul, bastante defendida pelo ex-ministro Celso Amorim?
A cooperação Sul-Sul é evidente, mas ficou de lado. Mas é o normal que sempre foi feito é o que tem que ser feito, e estamos voltando à normalidade. A normalidade da nossa política externa é dar prioridade à integração regional.
O Brasil é um país importante da região. Nós nos damos bem com todos os nossos vizinhos. A integração e a cooperação com os países africanos, com os quais temos uma identidade é importante também. Temos um mecanismo junto com Portugal, que é a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A maioria dos países está na África, mas a CPLP está presente em todos os continentes. E toda essa arquitetura, que é um trabalho de muitos anos, de décadas de diplomacia, como disse Celso Amorim, altiva e ativa, com pragmatismo responsável que o Brasil sempre teve. Houve um pequeno momento de eclipse, como disse um amigo estrangeiro querido. Não é uma invenção minha. Mas houve um eclipse, e, agora, voltamos. Acabou o fenômeno.
E tem uma agenda bastante importante a ser preparada, quando o Brasil presidir o G20, no fim do ano…
Exatamente. São várias coisas. Nós não chegamos a 100 dias de governo e, praticamente, todos os grandes líderes do mundo já estiveram aqui, falaram ou participaram de encontros, tanto com o presidente quanto com o ministro das Relações Exteriores. Isso foi uma coisa única, vamos dizer.
Na posse, houve pelo menos 60 delegações chefiadas por chefes de Estado e de governo. Isso foi único na história do Brasil. Neste ano, teremos uma reunião importante no meio do ano, que vai ser a cúpula que o presidente quer fazer junto com os demais países amazônicos membros do Tratado de Cooperação Amazônica, nos dias 7 e 8 de agosto, em Belém. Ainda estamos em construção com os demais países da região.
O Brasil já vai assumir a presidência pró-tempore do Mercosul no segundo semestre e já assumiu a presidência do mecanismo Ibas (composto por Brasil, Índia e África do Sul). E, no fim do ano, o país assume a presidência do G20, que vai exercer em 2024. Depois, sediará a COP 30, em 2025, também em Belém. Então, é uma atividade diplomática intensa, mas importante, porque sempre foi assim durante os dois primeiros mandatos do presidente Lula. E, agora, no terceiro, ele diz que temos que fazer mais e melhor.
A União Europeia voltou a ter interesse de avançar para fechar o acordo com o Mercosul. Como estão as negociações, porque o Uruguai queria deixar o bloco? Isso já foi apaziguado?
Ainda está sendo conversado. Quer dizer, os europeus têm sempre alguma coisa mais a acrescentar. E nós temos que observar isso e olhar direitinho tudo o que foi feito nesses quatro anos para podermos encaminhar bem (o processo) junto com os nossos parceiros do Mercosul. Isso está sendo conversado, mas eu acho que, em princípio, há um interesse dos dois blocos de fechar o acordo.
Uma das principais bandeiras do Brasil, era o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa estratégia vai voltar?
Vai voltar também junto com a necessidade de uma reforma. Não é querer o assento como está. O país quer uma reforma para que o Conselho de Segurança possa refletir a realidade atual. O Conselho, como está, reflete o formato das relações internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial. Hoje em dia, você tem outros atores importantes que contam e que não estão representados. Então, essa reforma é importante. A grande maioria é favorável.
É preciso fazer uma reflexão importante em relação ao veto do Conselho. Hoje em dia, todo mundo reclama que a Rússia está lá e pode vetar. No fundo, tudo precisa ser reavaliado para garantir uma representatividade real nas Nações Unidas.
O que queremos é forçar uma reforma, porque, com esse formato, de ter os membros permanentes e uma rotatividade de não permanentes, o Conselho não reflete a realidade, o equilíbrio de influência e de nível de participação dos países no quadro internacional.
O cenário geopolítico pós-pandemia mudou e continua mudando em meio à guerra entre Ucrânia e Rússia. Alguns analistas falam que a questão da globalização acabou ficando de lado e, agora, há um novo movimento de fechamento dos mercados, em vez de se falar do multilateralismo…
Nós só falamos de multilateralismo. E só acreditamos no multilateralismo. Não reconhecemos, não damos legitimidade a nada que seja fora do multilateralismo, com muito realismo. Fora do multilateralismo tem força bruta. Isso não tem respaldo no direito internacional.