Diplomatas apoiam permissão de Lula a navios iranianos
Foto: PEDRO KIRILOS/ESTADÃO
A permissão de Brasília para que dois navios de guerra do Irã fiquem atracados em um porto no Rio de Janeiro esta semana, apesar do pedido contrário dos Estados Unidos, expõe uma tentativa correta do novo governo brasileiro de mostrar independência diplomática, na avaliação de diplomatas. Americanos, no entanto, dizem que a decisão foi errada e é sem precedentes na região.
O ex-embaixador do Brasil nos EUA Rubens Barbosa afirma que a posição do Brasil está correta e não deve sofrer nenhuma repreensão ou punição política ou econômica de Washington. Segundo ele, em um cenário de intensas divisões globais, o País age corretamente ao se manter equidistante das tensões. “O Brasil aceita imposição de sanções desde que sejam aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU. Sanções unilaterais, do ponto de vista do Brasil, são ilegais, sejam comerciais, sejam políticas”, afirma Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice).
O Irã está sob duras sanções econômicas unilaterais dos EUA. Legisladores americanos defenderam que, ao permitir que os navios de guerra atracassem no Rio, o Brasil estaria violando essas sanções. Nesta quinta-feira, Israel criticou a permissão dada pelo governo brasileiro ao Irã, considerada pelo governo israelense como “perigosa e lamentável”. A manifestação foi feita pelo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Lior Haiat, em nota.
As embarcações Iris Makran e Iris Dena, que pertencem à frota de guerra iraniana, atracaram no porto do Rio de Janeiro no dia 26 e devem ficar na Baía de Guanabara até sábado, 4. Os navios já tinham recebido, em 13 de janeiro, uma autorização para aportar entre os dias 23 e 30 daquele mês, pouco antes da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 9 de fevereiro, a Washington a convite de Joe Biden. A atracação dos navios foi adiada em razão da sensibilidade diplomática do movimento e uma nova autorização foi emitida pela Marinha do Brasil e publicada pelo Diário Oficial da União no dia 23.
No último dia 15, a nova embaixadora dos EUA enviada por Biden a Brasília, Elizabeth Bagley, foi enfática sobre a posição do país em declaração pública, quando disse que os navios “não deveriam atracar em nenhum lugar”. Na ocasião, ela negou que o assunto tenha sido discutido entre Lula e Biden na Casa Branca, mas confirmou que o Departamento de Estado levou a questão para análise do governo brasileiro, por meio do Itamaraty.
Para outro diplomata brasileiro, Rubens Ricupero, a entrada de navios de guerra estrangeiros, normalmente, não representa um conflito. “É operação, como se diz nos meios militares, de se mostrar a bandeira”, diz.
Tanto ele como Barbosa afirmam que a recusa em receber os navios poderia ser vista como uma atitude de hostilidade ao Irã. “O Brasil não tem interesse em fazer isso, o País exporta muito para o Irã”, diz Ricupero.
O episódio, segundo o diplomata, é uma manifestação de não alinhamento e que não está envolvido na disputa entre EUA e Irã. “É uma amostra a mais, como no caso da guerra na Ucrânia, que lembra um pouco a velha política do PT. É uma espécie de reminiscência daquela origem do PT, de esquerda.”
O interesse por trás da decisão brasileira, na opinião do professor Carlos Gustavo Poggio, associado do Berea College (EUA), é marcar posição da nova política externa brasileira, como nos governos anteriores de Lula. Em 2010, Brasil e Turquia tentaram mediar um acordo sobre o programa nuclear iraniano, que acabou vetado mais tarde pelos EUA.
Poggio afirma que o caso pode se desdobrar em um momento ruim paras relações dos dois países, especialmente em razão da pressão bipartidária por uma resposta do governo americano. “As sanções (americanas) se aplicariam nesse caso. Os EUA têm ferramentas que permitiram algum tipo de retaliação ao Brasil. A questão é se vão usar ou não”, disse.
Em nota, no dia 27, o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, onde os republicanos têm maioria, Michael McCaul, avaliou como “totalmente inaceitável” a decisão do governo Lula. No dia seguinte, o senador Ted Cruz, que integra a mesma comissão no Senado, onde a maioria é democrata, disse que ela “ameaça” a segurança dos americanos e pediu que Biden aplique sanções ao Brasil. Os dois legisladores são republicanos do Texas.
Em 2019, dois navios cargueiros iranianos da empresa Eleva Química passaram quase dois meses atracados no Paraná. Depois de deixarem um carregamento de ureia, eles deveriam retornar ao Irã com milho brasileiro. A Petrobras, na época, se recusou a abastecer as embarcações por temer sofrer represálias dos EUA, uma vez que a empresa estava sob sanções americanas. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a Petrobras deveria fornecer o combustível e os navios zarparam em 29 de julho.
“É preciso lembrar que em 2019 havia aquele ‘bromance’ entre Bolsonaro e Trump”, diz Poggio, lembrando da relação próxima entre os presidente da época: Jair Bolsonaro e Donald Trump.
Autoridades iranianas no Brasil e em Teerã têm enfatizado a necessidade de aumentar seu poder militar e presença marítima internacional, seguindo orientações do líder supremo do país, aiatolá Ali Khamenei. O comandante da Marinha do Irã, almirante Shahram Irani, disse que as forças navais estão em “alto nível” de poder e com “presença ativa” em águas internacionais e distantes, segundo a agência iraniana Tasnim. Em janeiro, ele anunciou o envio da 86ª flotilha para águas na América Latina, uma movimentação que preocupa os EUA.
Em um editorial publicado nesta quarta-feira, o jornal Wall Street Journal criticou a decisão do Brasil e a da Casa Branca por se manter em silêncio sobre ela durante a visita de Lula. O texto afirma que a chegada dos dois navios é preocupante para as democracias do Hemisfério Ocidental. “Durante a visita de Lula ao Salão Oval, Biden exaltou alegremente ‘o estado de direito, a liberdade e a igualdade’, que ele descreveu como ‘princípios fundamentais em que ambos acreditamos’ e se gabou das ‘agendas mútuas’. Pena que essas agendas mútuas não incluam a unidade de propósito para proteger a segurança regional de um regime desonesto que espalha o terrorismo pelo mundo”, escreveu o jornal.
O encontro entre o secretário de Estado, Antony Blinken, e o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, nesta quinta-feira, 2, havia sido entendido pelo Itamaraty como um sinal de que os EUA não intensificarão a pressão a respeito do tema. A questão dos navios iranianos, segundo fontes envolvidas no encontro, não foi levantada por Blinken. No Itamaraty, a leitura feita é de que, a despeito da pressão, os americanos “entenderam o recado” enviado por Brasília de que a questão envolve o Brasil como um país soberano e sua relação com outro país soberano, o Irã. Os EUA não diminuíram o tom das críticas, no entanto.
Em resposta a questionamento do Estadão, um porta-voz do departamento de Estado americano afirmou que a permissão “passa uma mensagem errada e é uma decisão errada”. “Nós não discutiremos conversas diplomáticas, exceto para dizer que deixamos claro para países relevantes que esses navios não devem atracar em nenhum lugar”, afirmou o porta-voz. “O Brasil é um país soberano que pode tomar sua própria decisão sobre como se relacionar com o Irã. Até o momento, o Brasil é o único país do nosso hemisfério que aceitou um pedido de atração”, destacou, ainda, o porta-voz do Departamento de Estado americano, por e-mail.
Os governos Lula e Biden deram um pontapé amistoso na nova relação bilateral neste ano, diante de interesses políticos comuns, mas os EUA esperavam que o Brasil não permitisse a chegada das duas embarcações. Também em resposta ao Estadão, um porta-voz do departamento de Estado americano afirmou que “hospedar embarcações iranianas pertencentes a um regime que está reprimindo brutalmente seu próprio povo no país, fornecendo armas para a Rússia usar em sua guerra de agressão contra a Ucrânia, e engajando em terrorismo e desestabilizando a proliferação de armas pelo mundo envia uma mensagem errada e é uma decisão errada”.