Código penal desmonta tática de Bolsonaro

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Foto: Fernando Donasci/ Agência O Globo

A tese adotada pela defesa de Jair Bolsonaro para eximi-lo de responsabilidade na disseminação de posts com ataques ao sistema eleitoral pode acabar invalidada no decorrer de uma eventual investigação.

Isso porque o Código Penal diz expressamente em seu artigo 28 que não “excluem a imputabilidade penal a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.” Para advogados ouvidos pela equipe da coluna, esse artigo é um conceito básico do direito penal, sobre o qual não há qualquer polêmica. Por isso, certamente o argumento de Bolsonaro será contestado pela Polícia Federal.

Em depoimento nesta quarta-feira no inquérito que investiga a autoria intelectual dos atos golpistas de 8 de janeiro, o ex-presidente afirmou que postou sem querer um vídeo em que contesta o sistema eleitoral porque havia se submetido a uma cirurgia dias antes e estava sob o efeito de morfina.

O vídeo postado na pagina de Bolsonaro no Facebook dois dias depois da invasão e depredação generalizada nas sedes dos Três Poderes, em Brasília, trazia uma entrevista de um procurador do Mato Grosso do Sul a uma rádio de seu estado, dizendo que Lula não foi eleito pelo voto, mas “pelo sistema eleitoral” e que, por isso, as Forças Armadas deveriam “intervir no sistema político para reestabelecer a ordem”. O post foi apagado menos de duas horas depois, mas àquela altura o vídeo já estava circulando nas redes sociais.

“Este vídeo foi postado na página do presidente Facebook quando ele tentava transmitir para o seu arquivo de WhatsApp para assistir posteriormente. Por acaso, justamente nesse período, ele estava internado em um hospital em Orlando”, disse o advogado Paulo Cunha Bueno, que acompanhou o ex-presidente no depoimento. Bolsonaro não deu declarações.

A oitiva de Bolsonaro durou duas horas e meia e foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que atendeu a pedido apresentado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Para advogados ouvidos pela equipe da coluna, a tese da defesa do ex-presidente não se sustenta.

“Eu trabalho na área criminal há 24 anos e esse me parece um argumento até pueril. Alegar embriaguez ou uso de drogas não é suficiente para afastar a responsabilidade criminal”, diz Helena Lobo Costa, que além de criminalista, é professora de Direito Penal na Universidade de São Paulo.

“Se você tem uma confusão mental em decorrência de alguma substância ou remédio que tomou eventualmente, sem conhecimento de seus efeitos, pode-se até recorrer a esse argumento. Mas quando se está tomando uma substância que sabidamente altera o estado mental ou capacidade de autocontrole, não pode alegar inimputabilidade”, explica o criminalista Pierpaolo Bottini.

Na entrevista que deu após a oitiva, ex-ministro da Secretaria de Comunicação e atual assessor de imprensa de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, afirmou que ele “nem sequer havia percebido que havia postado o referido conteúdo”. Segundo o ex-ministro, “assim que alertado”, Bolsonaro apagou o conteúdo.

As declarações sugerem que a estratégia jurídica de Bolsonaro será tentar recorrer ao uso da droga não para afastar a inimputabilidade, e sim o dolo — quando fica provado que a pessoa teve a intenção de cometer um crime.

“O que parece é que eles sabem que não podem alegar que o ex-presidente perdeu o autocontrole por causa da morfina, ou que não sabia do que se tratava quando postou aquele conteúdo”, avalia Bottini. “O argumento deve ser o que de Bolsonaro se equivocou e postou no lugar errado, ou seja, sem a intenção de disseminar o conteúdo golpista.”

Ainda assim, trata-se de uma tese frágil, na opinião de Helena Lobo Costa.

“É verdade que o equívoco afasta a responsabilidade em várias situações. Apagar o post poderia indicar que houve equívoco, mas não estamos falando de um fato corriqueiro. O que houve em 8 de janeiro foi um ataque aos poderes, uma depredação generalizada, e o autor do post é ex-presidente da República. Se fosse mesmo um equívoco, uma postagem com a qual ele não concordasse, teria que ter gerado uma retratação ou um outro post se manifestando contra os ataques de forma contundente.”

O advogado criminalista Celso Vilardi, professor da FGV São Paulo, concorda. “Não vejo como prosperar a alegação de inimputabilidade. Do ponto de vista jurídico sequer há uma prova a sustentar essa alegação e, ainda que haja um medicamento envolvido, o quadro não se altera. A alegação parece até pueril”, avalia.

No caso do ex-presidente Bolsonaro, é preciso tanto averiguar se houve realmente a aplicação e uso da substância alegada e se sim, o quanto ela realmente era capaz de afetar a sua compreensão, aponta a a advogada criminalista Raquel Scalcon, professora da FGV São Paulo.

“Por tudo isso, a tese é pouco verossímil, especialmente porque será muito difícil confirmar que houve afetação de sua compreensão a tal ponto de haver isenção de sua responsabilidade penal”, opina.

O Globo