Inquérito das fake news vira alvo de disputa política

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Foto: Carlos Moura/STF

Na visão de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), “o Brasil deve muito a esse inquérito”. Para um ex-integrante da Corte, porém, “o que começa errado dificilmente se conserta”. A divergência escancarada entre os dois magistrados ajuda a entender as polêmicas que giram em torno do INQ 4781, mais conhecido como Inquérito das Fake News, que completou quatro anos de tramitação em março. Aberta sem provocação de autoridade policial ou do Ministério Público — o que, para alguns especialistas, fere a Constituição —, a ação virou, nas últimas semanas, uma espécie de “arma política” do governo e da oposição, com representantes de diferentes correntes ideológicas utilizando pedidos de inclusão de alvos na investigação em busca de desgastar adversários.

Sob responsabilidade de Alexandre de Moraes, o inquérito já resultou, por exemplo, no bloqueio de mais de cem perfis nas redes sociais, quase sempre de figuras alinhadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro, inclusive parlamentares. Não é à toa que, até o fim do ano passado, as apostas do meio jurídico indicavam que a investigação perderia força com a derrota do então candidato à reeleição. Os ataques de 8 de janeiro, no entanto, mudaram a temperatura na Corte, sem sinais de encerramento no horizonte.

Enquanto isso, a ação vai mobilizando políticos de situação e até bolsonaristas. Em 20 de março, o ministro da Justiça, Flávio Dino, pediu a inclusão no inquérito de dois filhos de Bolsonaro, Flávio e Eduardo, e de outros cinco políticos alinhados ao ex-presidente que fizeram insinuações falsas sobre uma agenda do ex-governador do Maranhão no Complexo da Maré, no Rio. Quatro dias depois, o troco: o senador Rogério Marinho, ministro na gestão anterior, pleiteou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornasse-se alvo da apuração por conta da acusação infundada sobre ter sido uma “armação de Moro” a operação da Polícia Federal que desbaratou um plano da maior facção criminosa do país contra o ex-juiz da Lava-Jato.

Moraes negou o pedido de Marinho por não enxergar “indícios mínimos da ocorrência de ilícito penal”, mas, como o inquérito tramita em segredo de Justiça, não há como saber se o ministro já debruçou-se sobre a demanda apresentada por Dino — o gabinete do magistrado não respondeu ao contato do GLOBO. Pelo mesmo motivo, é impossível enumerar ao certo quantos são os alvos do procedimento, em mais um elemento que gera críticas de uma parcela dos juristas.

O GLOBO contabilizou, em peças públicas e informações divulgadas pelo próprio STF, ao menos 30 investigados que tiveram, em algum momento, contas retidas nas redes sociais por decisões de Moraes no âmbito do inquérito. A lista vai de empresários, como Luciano Hang (Havan) e Edgar Corona (Smartfit), passa por militares como o general da reserva Paulo Chagas e inclui parlamentares como Carla Zambelli e Bia Kicis, ambas correligionárias de Bolsonaro no PL. Como cada um possuía dois ou mais perfis em diferentes plataformas, o número total sobe consideravelmente. Há ainda aqueles que, como o blogueiro Alan dos Santos, atualmente foragido no Estados Unidos, tentaram sucessivas vezes recriar as contas em descumprimento à ordem judicial, sofrendo novas sanções semelhantes, ajudando o número total a superar, no mínimo, uma centena de bloqueios.

Embora tenha virado, na avaliação de seus defensores, uma importante ferramenta contra o compartilhamento de informações falsas, o inquérito nem sempre teve esse objetivo tão bem delineado. Então presidente do STF, o ministro Dias Toffoli determinou a abertura do procedimento em 14 de março de 2019, um dia depois de um procurador da Lava-Jato, Diogo Castor de Mattos, acusar a Corte de tramar um “novo golpe” contra a força-tarefa ao determinar que crimes comuns cometidos em conexão com delitos de campanha fossem subordinados à Justiça Eleitoral — esfera que, na avaliação à época do membro do MP, “não manda ninguém para a prisão”.

A crítica gerou uma série de reações de Toffoli, que enviou representações contra Mattos ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e à Corregedoria do Ministério Público Federal (MPF). Já o inquérito foi instaurado sob a justificativa de que o regimento interno do STF prevê essa possibilidade nos casos de “infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal”. Neste caso, diz o artigo 43 da normativa, “o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”. Toffoli escolheu Moraes, sem o sorteio entre magistrados que costuma ocorrer na Suprema Corte.

— É um inquérito natimorto, porque não foi instaurado por provocação da autoridade competente, que seria o delegado de polícia ou o Ministério Público. Ele foi aberto pela própria vítima, ou seja, o Supremo. E ainda foi pinçado um relator — critica Marco Aurélio Mello, ex-ministro do STF aposentado em julho de 2021. — A previsão que consta no regimento é anterior à Constituição de 1988 e não foi recepcionada por ela, já que o texto consagrou o sistema acusatório, com separação entre acusador e julgador. É algo que fica em conflito com os ares democráticos e fere totalmente o sistema de freios e contrapesos.

Marco Aurélio marcou a própria posição no plenário da Corte, ao proferir o único voto contrário à legitimidade do inquérito e opinar pelo arquivamento, em junho de 2020. Por dez votos a um, a apuração prosseguiu.

— Foi uma época na qual o STF estava sob um tiroteio enorme, sendo muito atacado, e houve uma tentativa de conter essa ofensiva. Mas o que começa errado dificilmente se conserta. Você não pode eleger um objetivo e atropelar as regras — aponta o ex-ministro da Corte.

O próprio Alexandre de Moraes, ao tratar do inquérito durante palestra na Fundação FHC em 31 de março, defendeu que a abertura da investigação foi “necessária”. Sem isso, afirmou ele, as agressões contra o Judiciário “teriam aumentado de forma exponencial até uma ruptura”. De acordo com o magistrado, mais de 30 ofícios encaminhados pelo STF à Polícia Federal — então sob a tutela de Bolsonaro — reportando as ofensivas contra a Corte não haviam sido sequer respondidos.

– Como você faz neste momento? Ou você interpreta finalisticamente ou entrega a chave do STF — argumentou Moraes, que classificou a decisão tomada por Toffoli como um “acerto histórico”.

Já Marco Aurélio também questiona o fato de que, segundo ele, “praticamente tudo cabe dentro do inquérito”. Um dos episódios mencionados ocorreu em setembro de 2019, quando o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou em entrevista que cogitou assassinar Gilmar Mendes, também ministro da Corte. No dia seguinte, uma operação da Polícia Federal, determinada dentro do INQ 4781, cumpriu mandados de busca e apreensão na casa do ex-PGR. O inquérito também já abrigou uma decisão que censurou uma reportagem que levantava suspeitas contra Toffoli.

Responsável por um da dezena de votos que superou a interpretação de Marco Aurélio no plenário, Gilmar Mendes afirmou, em abril do ano passado, que o caso deixou o STF “mais unido”. Quatro meses depois, defendeu que a apuração evitou um “descarrilamento institucional”. Em janeiro último, mais um elogio aberto: “O Brasil deve muito a esse inquérito das fake news”, disse.

A decisão no plenário ocorreu após um recurso pelo arquivamento apresentado pela Rede Sustentabilidade, que, em um primeiro momento, usou argumentos semelhantes ao de Marco Aurélio. O partido, porém, voltou atrás, e tentou retirar a interpelação, o que foi negado por Moraes. O inquérito, que na opinião inicial da sigla apresentava “inquietantes indícios antidemocráticos”, converteu-se um anos depois, ainda na visão da Rede, “em um dos principais instrumentos de defesa da democracia”.

Desde então, Randolfe Rodrigues, senador pela Rede e, atualmente, líder do governo Lula no Congresso, pediu diversas vezes a inclusão de bolsonaristas na apuração, mirando alguns dos nomes mais ideológicos que passaram pelo Planalto, como os ex-ministros Ernesto Araújo e Abraham Weintraub. O senador não respondeu ao contato do GLOBO sobre o tema.

Weintraub, ex-titular da Educação, foi incluído no inquérito após dizer, em reunião ministerial cujo conteúdo acabou tornado público, que, por ele, “botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. Já Ernesto Araújo, que chefiou o Itamaraty, foi acusado de compartilhar recorrentemente desinformação sobre a pandemia da Covid-19.

Chefe de ambos, o próprio Bolsonaro também virou alvo do inquérito, em agosto de 2021, por conta dos repetidos ataques, sempre sem provas, às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral. Pelo mesmo motivo, o PL, partido do ex-presidente, passou a constar nos autos após elaborar um documento que buscava deslegitimar a lisura do resultado da disputa presidencial vencida por Lula.

— Vivemos um momento no qual qualquer pessoa, com um simples smartphone, pode disseminar conteúdo falso para milhões, com um risco gigantesco de dano para outros cidadãos e também para as instituições democráticas. Embora trate-se de uma discussão complexa, vejo o inquérito como um dispositivo válido para enfrentar esse panorama. E, acima de tudo, entendo que, se foi chancelado pelo plenário do STF, não há como discutir a legalidade do procedimento — diz o advogado Adib Abdouni, professor de Direito Constitucional e autor do livro “Fake news e os limites da liberdade de expressão”. — Acredito, no entanto, que com menos centralização haveria até mais efetividade. O desmembramento para instâncias inferiores no caso de alvos sem foro, por exemplo, pode dar mais celeridade à tramitação.

Até o momento, não há notícias sobre condenações ou mesmo indiciamentos exclusivamente no Inquérito das Fake News, mas um caso emblemático passou pelas curvas da investigação. Condenado e posteriormente indultado por Bolsonaro após proferir ataques a ministros do STF, o ex-deputado federal Daniel Silveira foi preso em flagrante no âmbito do procedimento, em fevereiro de 2021. Imposta 14 meses mais tarde pela própria Corte, a pena de 8 anos e 9 meses de reclusão, contudo, veio numa ação em separado, que tratou somente do episódio.

Nomes que já tiveram perfis bloqueados no âmbito do inquérito
Paulo Chagas (general da reserva)
Roberto Jefferson, ex-deputado e presidente nacional do PTB
Luciano Hang, empresário
Edgard Corona, empresário
Otávio Fakhoury, empresário
Edson Salomão, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia
Rodrigo Barbosa Ribeiro, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia
Bernardo Küster, blogueiro
Alan dos Santos, blogueiro
Winston Rodrigues Lima, militar da reserva
Reynaldo Bianchi Júnior, humorista
Enzo Leonardo Momenti, youtuber
Marcos Dominguez Bellizia, porta-voz do movimento Nas Ruas
Sara Giromini, ativista
Eduardo Fabris Portella
Marcelo Stachin
Rafael Moreno
Marcos Dominguez Bellizia
Paulo Gonçalves Bezerra
Partido da Causa Operária (PCO)
Bia Kicis
Carla Zambelli
Daniel Silveira
Omar Rocha Fagundes
Isabella Sanches de Sousa Trevisani
Carlos Antonio dos Santos
Erminio Aparecido Nadini
Gustavo de Carvalho e Silva
Sergio Barbosa de Barros
Oswaldo Eustáquio

Outros alvos
Filipe Barros, deputado federal, ex-vereador de Londrina (PR) e advogado
Cabo Junio Amaral, deputado federal e policial militar de Minas Gerais reformado
Luiz Philippe de Orléans e Bragança, deputado federal
Gil Diniz, conhecido como “Carteiro Reaça”
Rodrigo Janot
Abraham Weintraub
Jair Bolsonaro
Partido Liberal

O Globo