Lula terá que enfrentar medidas que desagradam militares
Foto: Ricardo Stuckert/PR
As imagens do general Gonçalves Dias perambulando como um abobado entre os invasores do Palácio do Planalto em 8 de janeiro puseram fim à hesitação de meses no governo sobre a necessidade de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar os fatos daquele dia.
O próprio presidente da República tinha sido contra, alegando que a CPI poderia criar uma “confusão tremenda”, uma vez que os atos golpistas já eram investigados pelos órgãos competentes. Nos bastidores, porém, todo mundo sabia que o que o presidente temia mesmo era melindrar os militares numa conjuntura já bastante tensa.
Quem conhece a trajetória de Lula não se surpreendeu. Ele sempre foi partidário da conciliação — a ponto de, nos dois primeiros mandatos, sufocar o debate no governo sobre a revisão da anistia a militares que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura, para não criar conflitos com a caserna.
Na campanha, Lula de novo “costeou o alambrado”, como dizia Leonel Brizola. Prometeu “limpar” o governo, mas ponderou que os militares eram mais responsáveis do que Bolsonaro e disse não ter queixas das Forças Armadas em suas passagens anteriores pelo governo.
Mandou, ainda, aliados procurarem interlocutores nos quartéis para sondar sobre os riscos de um golpe caso fosse eleito — e também para garantir que, em caso de vitória, não os perseguiria.
Na transição, o único tema para o qual não houve diagnóstico foi Defesa e Segurança Nacional. Na escolha do novo comandante do Exército, Lula também preferiu não pôr a mão em vespeiro, seguindo a tradição de nomear o general mais antigo.
Isso apesar do alerta de companheiros de partido e até de ministros do Supremo para o fato de Júlio Cesar de Arruda ser reconhecido entre os próprios pares como bolsonarista.
O especialista em assuntos militares Octavio Amorim Neto chama esta primeira etapa de “estratégia de baixo custo”, que ele entende ter sido lastreada na avaliação de que a mera nomeação de um conservador como José Múcio para a Defesa bastaria para que o bolsonarismo fosse perdendo força com o avanço do governo.
O 8 de Janeiro demoliu esse esforço.
O primeiro a cair foi o próprio Arruda, que se recusou a desfazer a promoção para chefe de um batalhão em Goiás do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, um coronel envolvido até a medula em iniciativas golpistas.
No início de março, Lula transferiu a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para a Casa Civil.
Com o flagra de Gonçalves Dias e suas mal explicadas tentativas de esconder as imagens do público, demitiu também o general.
Uma ala do governo sustenta, com razão, que parte da responsabilidade pela crise é do próprio Lula e de suas meias medidas. Seria a hora, portanto, de aproveitar a oportunidade para forçar a barra e acelerar a limpa.
O trabalho começou a ser feito ontem, com a demissão de 28 militares do GSI. Por enquanto, a ordem é colocar mais e mais civis no gabinete, mas mantê-lo sob o comando de um militar.
A realidade é que tampouco será fácil para Lula fazer uma guinada brusca. Não há notícia de corporação que reaja bem à perda de poder, independentemente do uniforme que ostente. Além disso, o bolsonarismo fez do partido que abriga a extrema direita o maior do Congresso e elegeu os três principais governadores do país, além de ter deixado como legado a militarização da política.
Para desmontar esse aparato, é preciso uma costura com o Parlamento e com a sociedade civil, executada com preparo, estratégia, paciência e foco — coisas que o governo Lula não vinha demonstrando mesmo depois do 8 de Janeiro.
Pelo contrário: o presidente parecia empurrar o problema com a barriga esperando que o STF liquidasse a fatura, enquanto ele se concentrava nas regras fiscais, na agenda social e na ofensiva de política externa.
A CPI surge no momento em que nenhuma dessas pautas anda no ritmo que Lula gostaria, em parte por causa das falhas de articulação política no Congresso.
Agora, o governo terá de improvisar a toque de caixa uma estratégia para enfrentar militares que insuflaram o golpismo, ao mesmo tempo que tenta evitar o estrago político que seu próprio general pode provocar. E não só.
Antes tarde do que nunca, Lula terá de se empenhar em construir uma nova relação com os militares, compreendendo que não adianta reciclar o que já foi feito no passado. Está aí uma área em que, por mais que o presidente queira, o Brasil não voltou e não voltará a ser o que era.