Ministros bolsonaristas do STF apoiam golpistas
Foto: Isac Nóbrega/PR
Que dias estes. E vamos ver o que nos reservam os vindouros. O Supremo tornou réus 100 manifestantes golpistas, investigados em dois inquéritos: o 4.921 e o 4.922. Sete outros ministros acompanharam Alexandre de Moraes, o relator. André Mendonça e Nunes Marques divergiram. Ainda que a maioria tenha feito a coisa certa, esses dois votos indicam a deterioração a que foram submetidas as instituições. Nada escapou da voragem dos quatro anos de descalabro. Direi por quê. Antes, vamos entender a decisão de oito magistrados a partir das balizas estabelecidas por Moraes.
O Inquérito 4.921 apura a ação dos chamados autores intelectuais ou instigadores dos atos de 8 de janeiro. São acusados pela Procuradoria Geral da República de incitação ao crime (Artigo 286 do Código Penal) e associação criminosa (Art. 288). Já o 4.922 se ocupa dos valentes que partiram mesmo para a ação direta. Nesse caso, as imputações são bem mais graves: associação criminosa armada (Art. 288, Parágrafo Único); abolição violenta do estado democrático de direito (Art. 359-L); golpe de estado (Art. 359-M) e dano qualificado (Art. 163, Parágrafo Único, incisos I, II, III e IV), todos do Código Penal. A acusação envolve ainda a prática do crime de deterioração de patrimônio tombado (Art. 62, Inciso I, da Lei 9.605/98). E há um terceiro inquérito, o 4.920, que investiga os financiadores e os que prestaram auxílio material aos atos golpistas. Na madrugada desta terça, diga-se, Moraes votou para tornar réus outros 200. Para que vocês não percam as contas: até agora, a PGR denunciou 1.390 pessoas. Desse grupo, 239 seriam executoras (as imputações mais graves), e 1.150, incitadoras. E, até agora, há apenas um caso de omissão de agente público. Mas cumpre lembrar que o MPF não concluiu o seu trabalho. Nesse outro grupo de 200, 100 estão no âmbito do Inquérito 4.921, e ou outros 100, do 4.922.
Vamos lá. O pilar do voto-guia de Moraes, que contou com a adesão de seus pares, excetuando-se Mendonça e Nunes Marques, diz respeito justamente à liberdade de expressão. Escreveu: “Não é qualquer manifestação crítica que poderá ser tipificada pela presente imputação penal, pois a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias são valores estruturantes do sistema democrático, merecendo a devida proteção. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva”.
Então é aceitável e legal que se criem acampamentos em defesa de um golpe de Estado ou se invadam as respectivas sedes dos Três Poderes? Ele responde: “Tanto são inconstitucionais as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático, quanto aquelas que pretendam destruí-lo, juntamente com suas instituições republicanas, pregando a violência, o arbítrio, o desrespeito à separação de Poderes e aos direitos fundamentais, em suma, pleiteando a tirania, o arbítrio, a violência e a quebra dos princípios republicanos, como se verifica pelas manifestações criminosas ora imputadas ao denunciado”.
E ainda: “Não existirá um Estado Democrático de Direito sem que haja Poderes de Estado, independentes e harmônicos entre si, bem como previsão de direitos fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade desses requisitos; consequentemente, a conduta por parte do denunciado revela-se gravíssima e, ao menos nesta análise preliminar, corresponde aos preceitos primários estabelecidos nos indigitados artigos do nosso Código Penal”.
Mas cabe ao Supremo julgar os golpistas de 8 de janeiro? O ministro também enfrentou o tema da competência do tribunal. E o fez de dois modos: apontou a óbvia conexão dos atos do dia 8 de janeiro com parlamentares investigados no tribunal justamente por envolvimento com atos golpistas: André Fernandes (PL-CE), Clarissa Tércio (PP-PE), Silvia Waiãpi (PL-AP) e Coronel Fernanda (PL-MT). E há uma outra conexão que deveria fazer soar o alarme de Jair Bolsonaro: os três inquéritos se ligam ao da “fake News” e ao das “milícias digitais”, relatados por Moraes. Lá estão, entre outros, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ)
Os dois ministros indicados por Bolsonaro resolveram ignorar esses liames e sustentaram que o STF não tem competência para julgar os agora réus porque não estes não detêm foro especial. Também não viram ligação nenhuma entre os Inquéritos 4.921 e 4.922 e os que já estão no tribunal. Parece pouca coisa, mas não é. Os inquéritos sobre os atos golpistas só estão sob os cuidados de Moraes porque foi considerado prevento — isto é, porque relator das investigações… conexas! Alegar, como fizeram, que o tribunal não poderia cuidar do assunto é um pouco mais do que uma opinião divergente: é uma aberração que ignora os fatos. Para eles, tudo deveria ser enviado à Justiça Federal do DF — hipótese, então, em que aqueles eventos macabros não teriam nenhuma ligação com a indústria de mentiras e com a ação dos milicianos digitais. É um jeito de ver o mundo. Um jeito estupidamente errado.
E no caso de a tese dos dois ser derrotada, como foi? A dupla votou pela rejeição da denúncia contra as 50 pessoas que foram presas na área anexa ao QG do Exército em Brasília. Para Mendonça, o MPF não apresentou “indícios mínimos e suficientes da prática dos delitos narrados pelas cinquenta pessoas denunciadas por estarem no acampamento no dia 9 de janeiro de 2023”. Para Nunes Marques, “a falta de indícios de autoria evidencia a ausência de justa causa , condição imprescindível para o recebimento da denúncia ofertada , o que, por sua vez, sinaliza excepcionalidade apta a justificar a rejeição da denúncia instaurada em desfavor dos ora denunciados” Par esses ministros, faltou, no caso, a individualização das respectivas condutas, condição necessária para apresentar a defesa. Ocorre que também isso foi devidamente enfrentado por Moraes, alinhando-se com o MPF. Escreveu: “Em crimes dessa natureza, a individualização detalhada das condutas encontra barreiras intransponíveis pela própria característica coletiva da conduta, não restando dúvidas, contudo, que todos contribuem para o resultado, eis que se trata de uma ação conjunta, perpetrada por inúmeros agentes, direcionada ao mesmo fim”. Parece quase ocioso explicar, mas vamos lá. Aquele era um acampamento ilegal. E os que lá estavam, em defesa de um golpe de Estado, incitando os militares a tomar o poder pelas armas, estavam, nas palavras de Moraes, “pregando a violência, o arbítrio, o desrespeito à separação de Poderes e aos direitos fundamentais, em suma, pleiteando a tirania, o arbítrio, a violência e a quebra dos princípios republicanos”. Também nesse caso, os respectivos votos dos dois ministros são mais graves do que se mostram à primeira vista porque, fosse como dizem, teríamos a normalização de acampamentos golpistas. Bastaria que um grupo tomasse uma área qualquer e pregasse continuamente o rompimento da ordem legal, incitando as Forças Armadas e outros aliados à ação direta, e a democracia não teria como contê-los sob o pretexto da “impossibilidade de individualizar as condutas”. Eis uma hipótese, então, espetacular em que se pode punir uma pessoa por um crime, mas nunca 100, 200 ou mil. Como é? Um criminoso pode ir em cana, mas nunca um coletivo deles, cometendo o mesmo delito?
Até aqui, Mendonça e Nunes Marques estão juntos. Mas eles divergiram um tanto. Se admitida a competência do Supremo e ignoradas os crimes dos 50 do acampamento, Mendonça concordou com as imputações aos outros 50, os que cometeram atos violentos, nos termos propostos pelo MPF, aceitos por Moraes e endossados por sete outros ministros. Ah, Nunes Marques nem isso… Prestem atenção! No caso dos que foram presos com a boca na botija, ele defende as seguintes imputações: “dano qualificado pela violência e grave ameaça, com emprego de substância inflamável, contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima”; “abolição violenta do Estado democrático de Direito” e “deterioração de patrimônio tombado”. Mas afasta “associação criminosa armada” e “golpe de Estado”. A diferença parece sutil, mas não é. Vocês se lembram quem é o autor original da tese de que o 8 de janeiro não foi uma tentativa de golpe? Sim, ele! Jair Bolsonaro. Em entrevista concedida nos EUA, quando lá estava homiziado, perguntou: “Golpe? Que golpe? Onde estava o comandante? Onde estavam as tropas, onde estavam as bombas?” Parece ser a indagação silenciosa que também faz Nunes Marques. Ao recusar a “associação criminosa”, busca transformar aquela patuscada violenta numa espécie de ocorrência fortuita, sem planejamento e organização. Sim, a dupla perdeu. E vai perder de novo no caso dos outros 200, dos outros e dos outros…De qualquer modo, eles nos lembram que o Brasil caminha ainda em solo institucional perigoso.