PRF está comprando “arsenal de guerra”
Foto: Márcia Foletto/O Globo
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) homologou na última quinta-feira (13) um contrato para a aquisição de 11 metralhadoras automáticas israelenses, fruto de uma licitação aberta ainda no governo Jair Bolsonaro.
A manutenção da concorrência, cujo resultado já foi definido na era Lula, chamou atenção pelo poderio do arsenal, considerado incompatível com atribuições da corporação, das quais a principal é a vigilância das rodovias federais brasileiras.
As metralhadoras são armas “de guerra” capazes de disparar 840 tiros por minuto – ou 15 disparos por segundo. De acordo com o pregão homologado na quinta-feira, o governo federal vai pagar R$ 304,5 mil por 11 armas, 32 mochilas, 18 coletores de munição e 32 tripés para armamentos.
Para especialistas em segurança pública ouvidos pela equipe do blog, o uso de armas com tamanho poder de fogo não seria justificável nem mesmo em regiões conflagradas.
Outro aspecto que provoca estranheza é a opção por metralhadoras no lugar de fuzis, que são armas de precisão, e por armamentos automáticos ao invés de semiautomáticos. Esse tipo de arma não só é inadequado para a natureza ostensiva da PRF como é muito perigoso no contexto urbano, alertam especialistas.
“Esta é uma arma usada por militares para a supressão do fogo [que atira indiscriminadamente com o objetivo de destruir o maior número de alvos possíveis ao mesmo tempo], ou seja, causar o maior dano possível”, explica Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Não faz qualquer sentido o uso dessa metralhadora dentro das atribuições da PRF, muito menos em enfrentamentos urbanos. Dada a capacidade de mais de 800 tiros por minuto, bem como a falta de mobilidade do policial em razão do peso, é uma arma típica de guerras, com muitos efeitos colaterais pelo risco de balas perdidas”, completa Uchôa, que é policial federal e especialista em armas.
Uma das preocupações desses especialistas e de integrantes da própria PRF ouvidos pela equipe da coluna é que a compra das armas seja um sinal de que o governo Lula vá manter uma política que marcou a corporação na gestão passada: a participação da instituição em operações policiais fora de seu escopo, autorizada por uma portaria do Ministério da Justiça de Bolsonaro.
Como mostrou O GLOBO, a PRF foi responsável por 12 matanças no último governo. O termo define ocorrências com três ou mais mortes dentro de um grupo em uma mesma ação policial. Nos últimos quatro anos, várias dessas incursões em áreas urbanas pelo Brasil, incluindo favelas do Rio, causaram banhos de sangue e mergulharam a instituição em controvérsias.
Um dos exemplos mais emblemáticos foi uma operação conjunta da PRF com a Polícia Militar do Rio na Vila Cruzeiro, Zona Norte da capital, que deixou pelo menos 23 mortos. A ação foi celebrada por bolsonaristas e pelo então presidente da República.
O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), já cobrou publicamente a gestão Lula pela retomada da participação da PRF em ações policiais no estado.
A própria compra das metralhadoras só foi possibilitada por uma medida assinada por Bolsonaro. Até 2019, compras que fugissem da razoabilidade eram dificultadas por um controle realizado pelo Exército, mas um decreto presidencial de até 2019 excluiu essa prerrogativa.
“Naquele ano, uma portaria de Bolsonaro alterou a norma para a aprovação de compra de armas pelas polícias”, explica Bruno Langeani, diretor do Instituto Sou da Paz. “Antes, o Exército fazia um filtro prévio nas compras, dando o aval ao tipo de arma, calibre e quantidade que cada instituição poderia ter. Isso evitava algumas distorções, como a PRF comprar metralhadoras”.
Entre agentes da PRF, o poderio das armas adquiridas preocupa mesmo quem defende a compra desse tipo de arsenal para fazer frente ao crime organizado.
Em mensagens de grupos de agentes da PRF obtidas pela equipe da coluna, policiais espantados com o arsenal chegaram a ironizar a compra das metralhadoras. “A PRF agora vai interceptar tanques de guerra nas rodovias?”, dizia uma delas.
Nós procuramos a PRF e questionamos os critérios técnicos para a compra dos armamentos. A corporação atribuiu o investimento ao chamado “novo cangaço”, quando quadrilhas criminosas fortemente armadas sitiam cidades inteiras para roubar bancos ou estabelecimentos comerciais.
O fenômeno se intensificou nos últimos anos em cidades pequenas e médias do país, aterrorizando moradores. A atuação dos “cangaceiros” é, inclusive, o pano de fundo de uma das operações mais sangrentas da PRF sob Bolsonaro, em 2021, quando 26 criminosos que planejavam assaltar uma agência do Banco do Brasil foram mortos em Varginha (MG).
“As armas são uma ferramenta necessária para que policiais possam proteger a si mesmos e à sociedade contra indivíduos ou organizações criminosas que representem ameaça à segurança pública”, diz a PRF. “Os agentes da PRF são treinados para avaliar cada situação e usar força proporcional ao nível de ameaça, com o objetivo de minimizar danos e proteger a vida”.
A corporação informou ainda que as 11 metralhadoras ficarão sob o controle do grupo de resposta rápida da PRF, com sede em Brasília, “por ser a equipe especializada em atuação nas operações de alta complexidade, risco e urgência”, e que o uso se dará apenas em regiões rurais.
Especialistas, no entanto, avaliam que a justificativa não explica a compra de metralhadoras automáticas. E, mesmo para combater o “novo cangaço” há dúvidas sobre a viabilidade da utilização do arsenal.
Isso porque os ataques ocorrem de forma dispersa pelo território nacional, muitas vezes em regiões remotas ou sem acesso a rodovias federais. Outro obstáculo é o fato da PRF não ter entre suas atribuições originais o poder de investigar, ao contrário da PF. Seu setor de inteligência também foi esvaziado por exonerações no início do governo Lula, como mostramos em janeiro.
“O policial tem que pensar sempre em proteger a população. Não há como protegê-la com uma arma dessas. Ela não tem precisão como um fuzil semiautomático. Você não tem a capacidade de direcionar um alvo, é muito mais perigoso no uso em aglomerações residenciais”, avalia Roberto Uchôa, do Fórum de Segurança Pública.