Torres terá que escolher entre cadeia e delação
Foto: Reprdução; Reuters; Evaristo Sá/AFP
Anderson Torres, ex-secretário de Segurança Pública do DF e ex-ministro da Justiça, é, originalmente, delegado da Polícia Federal. Deve saber que está muito encrencado. Os fios que ligam fatos muito graves a seu nome já compõem uma tessitura que estão saindo do verbete da suspeita e dos indícios para virar um conjunto robusto de evidências. Não sou “coach” de investigados, não é? Mas procuro ser um leitor atento dos diplomas legais. Convém que o doutor comece a ler no detalhe a Lei 12.850, também chamada “das organizações criminosas”, que dedica toda a Seção I do Capítulo II à chamada “Colaboração Premiada”. Ah, sim: nuvens se adensam também no horizonte de Jair Bolsonaro. Não sou exatamente um entusiasta da dita-cuja, mas ela existe. Se Torres decidir chamar apenas para si, sem buscar nenhum outro benefício decorrente da delação, a responsabilidade por ações vinculadas diretamente à tentativa de sabotagem da eleição, à articulação de um golpe fantasiado de legalismo e ao ataque, com práticas de caráter terrorista, às respectivas sedes dos Três Poderes, pode estar reservando para si uma cela na Papuda, ou outro presídio que sua defesa reivindicar, por muitos anos. Caberá a ele saber até onde vai sua fidelidade política e quando tempo de sua vida está disposto a doar a uma causa que buscou pôr fim ao regime democrático no Brasil.
Não estou redigindo uma sentença condenatória, como resta evidente. Estou aqui a chamar a atenção para o que vem pela frente. Seu silêncio pode transformá-lo na figura mais robusta do “antigo regime” a receber uma punição realmente exemplar. Agiu apenas por convicção ou também obedecia ordens? A revelação de que viajou para a Bahia às vésperas do segundo turno e que tentou, num Estado que votou majoritariamente em Lula, somar esforços às da Polícia Rodoviária Federal, para criar dificuldades de trânsito a potenciais eleitores lulistas é de gravidade extrema. Pior: equipe o Ministério da Justiça, sob a orientação da delegada Marília Ferreira Alencar, lotada na pasta, teria elaborado mapeamento das cidades a serem alvos de ações da PRF e da própria Polícia Federal — destacando-se, até onde se sabe, que a PF não participou da operação. Tal mapeamento teria sido pautado pelo desempenho do petista no primeiro turno. O bloqueio de estradas em Estados do Nordeste foi efetivamente levado a efeito no dia da eleição. Acrescente-se: na véspera, o ministro Alexandre de Moraes já havia determinado a suspensão de qualquer operação do gênero. Alguém precisa apresentar a Torres o Artigo 350-P do Código Penal: Art. 359-P – Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional: Pena – Reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, além da pena correspondente à violência. Torres se verá às voltas com aqueles que testemunharam a sua atuação em favor dos bloqueios, sob o pretexto de que era preciso investigar suposto esquema para fraudar o pleito.
Conhecemos os termos da minuta golpista. Era uma aberração que buscava emprestar um impossível lustro de legalidade a um golpe de Estado, com a decretação do Estado de Defesa apenas no Tribunal Superior Eleitoral. As funções do TSE seriam assumidas por uma junta, sob o controle do Ministério da Defesa. Adicionalmente, reeditava-se parcialmente o AI-5 ao tornar as decisões desse grupo irrecorríveis. O malfadado documento estava na casa de Torres e só foi encontrado em razão do mandado de busca e apreensão determinado por Moraes à esteira das sandices do dia 8 de janeiro. Ele diz desconhecer a origem do documento, que afirma ter chegado às suas mãos por intermédio de uma secretária, que o desmente. Alguém precisa apresentar a Torres o Artigo 359-L do Código Penal: Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. Como se nota, basta a tentativa. É bom lembrar o que levou esse então fiel escudeiro de Bolsonaro à cadeia: foram os atos golpistas de 8 de janeiros, com práticas similares ao terrorismo. Era ele o secretário de Segurança do DF no dia dos ataques, mas havia tirado licença e viajado para os EUA. No dia 1º de março, Moraes manteve a preventiva. Escreveu em seu despacho: “A omissão e conivência de diversas autoridades da área de segurança e inteligência ficaram demonstradas com (a) a ausência do necessário policiamento, em especial do Comando de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal; (b) a autorização para que mais de 100 (cem) ônibus ingressassem livremente em Brasília, sem qualquer acompanhamento policial, mesmo sendo fato notório que praticariam atos violentos e antidemocráticos; (c) a total inércia no encerramento do acampamento criminoso na frente do QG do Exército, nesse Distrito Federal, mesmo quando patente que o local estava infestado de terroristas, que inclusive tiveram suas prisões temporárias e preventivas decretadas.” O ministro acrescentou: “No que diz respeito especificamente à “Minuta de Decreto”, a Procuradoria-Geral da República ressaltou a probabilidade de que, em liberdade, ANDERSON GUSTAVO TORRES coloque em risco o prosseguimento das investigações, a colheita de provas e, por conseguinte, a persecução penal.” Alguém precisa apresentar a Torres o Artigo 359-M do Código Penal: “Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.” Não sei se o ex-ministro se dá conta, mas, pelo topo, fala-se aqui, só com os crimes listados (há outros), de 26 anos de cadeia. Que fosse reduzida a pena à metade em razão de atenuantes, seria, ainda assim, um sofrimento e tanto. E por quê? Convém lembrar mais um trecho da decisão de Moraes que manteve a preventiva: “Absolutamente TODOS serão responsabilizados civil, política e criminalmente pelos atos atentatórios à Democracia, ao Estado de Direito e às Instituições, inclusive pela dolosa conivência — por ação ou omissão — motivada pela ideologia, dinheiro, fraqueza, covardia, ignorância, má-fé ou mau-caratismo.” Reitero meu convite para que Torres examine a Lei 12.850.
Conforme informou a Folha, “O corregedor-geral eleitoral, Benedito Gonçalves, concluiu a fase de coleta de provas no processo mais adiantado contra a chapa encabeçada por Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022. O caso pode levar à inelegibilidade do ex-presidente. Na sexta-feira (31), o ministro do TSE determinou a intimação das partes para que apresentem seus últimos argumentos (alegações finais) nos autos da Aije (ação de investigação eleitoral). A ação trata do encontro promovido por Bolsonaro no Palácio do Alvorada com embaixadores em julho do ano passado, quando o então mandatário fez ataques sem provas ao sistema eleitoral.” A tal minuta golpista foi agregada à ação. Como já houve a intimação para as alegações finais, há uma boa probabilidade de que Gonçalves não tome a iniciativa de incorporar as evidências mais recentes contra Torres, que, por óbvio, remetem a Bolsonaro Ainda que as lambanças do ex-ministro na Bahia fiquem formalmente fora do processo, juízes não estão obrigados a fingir para si mesmos que não sabem aquilo que sabem. Podem até omitir um determinado dado ao redigir a sua decisão porque ausente dos autos, mas não há como omiti-lo da própria consciência. Na primeira ação contra Bolsonaro a ser julgada no TSE — há outras 15 —, a possibilidade de o Homiziado Retornado se tornar inelegível é grande. Quanto a Torres, vamos ver. Se não seguir um bom conselho, que lhe é dado de graça, há o risco de amargar uns bons anos na cadeia. A única boa notícia para ele, nessa hipótese, é a possível companhia do antigo chefe. Mas demoraria um tanto. Por um tempo, restará apenas a pantera da solidão.