Veja defende impunidade de Bolsonaro
Foto: André Borges/EFE
Edição desta semana da Revista Veja traz afirmação maluca de que Bolsonaro “não sabia” das joias que contrabandeou. Confira, a seguir
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Revelado no início de março, o caso das joias sauditas de Jair Bolsonaro parecia a bala de prata na imagem do ex-presidente, resvalando diretamente também na ex-primeira-dama Michelle. Seria o flagrante de uma tentativa de incorporar ao patrimônio um presente milionário, com direito a tentativas tacanhas de burlar a fiscalização. O escândalo ganhou um novo elemento na última terça, 25, quando veio a público o depoimento prestado à PF, encarregada das investigações, de uma servidora do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), órgão do governo responsável por receber e catalogar presentes recebidos pelo presidente em exercício. Na oitiva, ela afirmou que, em determinado momento no trâmite burocrático, um dos dois conjuntos de joias enviados pelos sauditas chegou a ficar em “posse” de Michelle no Palácio da Alvorada, no ano passado. A servidora não detalhou se o conjunto havia sido de fato entregue em mãos à ex-primeira-dama, como chegou a ser divulgado, mas a repercussão, como era de esperar, ganhou consideráveis proporções. No mesmo dia, Michelle se posicionou publicamente, por meio de sua assessoria, dizendo que desconhecia a existência e o conteúdo dos presentes ofertados pela Arábia Saudita, como já dissera anteriormente. Ainda no mesmo dia, ela se mostrou irritada ao sair de um evento do PL — do qual é presidente da ala setorial feminina — e ser questionada por jornalistas. “Foi tudo feito pelo trâmite administrativo, não recebi em mãos”, afirmou.
O depoimento da servidora do GADH é uma das peças da investigação da PF que apura se Jair Bolsonaro cometeu o crime de peculato — quando um agente público desvia dinheiro ou bens para proveito próprio. No âmbito do inquérito, já foram ouvidos os principais personagens envolvidos na vinda dos itens. Entre eles, o próprio ex-presidente, o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, que chefiava a comitiva ao país árabe (Bolsonaro não participou da viagem), auxiliares, como o então chefe de gabinete de Albuquerque, José Roberto Bueno Junior, o ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Barbosa Cid, e servidores do GADH e da Receita Federal do Aeroporto de Guarulhos, terminal por onde desembarcaram as joias.
Considerando o que a investigação apurou até agora, salvo algum fato novo, Bolsonaro dificilmente será indiciado. Essa é a conclusão a que se pode chegar após a leitura do que a PF obteve até agora ouvindo os envolvidos, que são unânimes em confirmar o que Bolsonaro vem dizendo: ele ficou sabendo do imbróglio mais de treze meses depois da chegada das joias. Segundo a defesa do ex-presidente, corroborada por testemunhos, trapalhadas burocráticas, temperadas por grandes doses de incompetência, fizeram o caso chegar a esse ponto. Para coroar a lambança, no apagar das luzes de seu governo, Bolsonaro ordenou auxiliares a tentar resolver o imbróglio — e a ação foi feita de forma atabalhoada. Como se sabe, um dos pacotes de presentes, com itens femininos (um conjunto de joias da marca Chopard avaliado em 16,5 milhões de reais), ficou retido na chegada ao país pela Receita Federal. O outro lote, com os produtos masculinos (contendo um relógio e abotoaduras), seguiu para o Ministério de Minas e Energia. Simples medidas burocráticas regularizariam a situação, mas nada foi feito a respeito e a confusão foi ganhando uma dimensão enorme, com protagonismo de dois militares. Encarregado pelo ministro (e almirante) Bento Albuquerque de regularizar as duas situações, o auxiliar e contra-almirante José Roberto Bueno Junior afirmou à PF que, além de não ter informado o presidente sobre a retenção do pacote na Receita e do outro que foi carregado ao Ministério de Minas e Energia, não tomou as providências adequadas. Ele se contentou em mandar ofícios entre outubro e novembro de 2021 (um primeiro para o GADH, sobre ambos os conjuntos, e outro para a Receita Federal, apenas sobre o conjunto feminino) pedindo informações a respeito de como proceder, mas não acompanhou o caso de perto, por ter “demandas mais relevantes naquele momento”. Tampouco o chefe cobrou-lhe alguma satisfação. Resultado: o pacote masculino ficou armazenado em um cofre no Ministério, com o intuito de “esperar” que as joias retidas em Guarulhos fossem liberadas e, assim, que todos os presentes fossem encaminhados de uma só vez ao GADH.
A bomba explode no fim de 2022, quando chega ao conhecimento de assessores mais próximos de Bolsonaro o conjunto de joias retido em Guarulhos, já prestes a ir a leilão. Assustado com a informação, o ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, por ordem do então presidente, enviou um emissário a Guarulhos, em um voo da FAB para reaver e regularizar os bens. Antes de o emissário chegar, Cid havia entrado em contato com o secretário especial da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, e recebido instruções de como fazer a regularização. Pelo jeito, não entendeu direito a orientação. Quando o emissário chega ao aeroporto, é informado pela Receita de que não seria possível a retirada do conjunto sem um documento que estava faltando. Em seu depoimento, Cid diz que seu ajudante não foi informado sobre qual seria esse documento e que ligou na mesma hora para Vieira Gomes. A “carteirada” não surtiu efeito: o secretário bateu o pé e não liberou nada. Passados alguns dias, ao não ter uma resposta sobre qual deveria ser a tramitação, Cid disse em depoimento que saiu do Brasil de férias, dando o assunto por encerrado — ou esquecido — até que o caso veio à tona em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em março.
Enquanto as joias femininas continuam em posse da Receita, o conjunto masculino acabou sendo regularizado. A caixa que estava no Ministério de Minas e Energia chegou ao GADH na última semana de novembro e os servidores iniciaram o procedimento técnico para tratamento e guarda e destinação para o acervo privado. Por questões de “segurança” pelo alto valor dos objetos, o chefe de gabinete do GADH decidiu que as joias fossem destinadas ao Palácio da Alvorada (Michelle diz apenas que soube que elas estavam no local, mas nega que recebeu em mãos o presente). De lá, antes do fim do mandato, o GADH recolheu os itens, juntou-os com os mais de 8 000 presentes de Bolsonaro que constavam como acervo privado e todos acabaram sendo encaminhados à fazenda do ex-piloto Nelson Piquet, local indicado pela assessoria de Bolsonaro.
Exemplo lamentável da promiscuidade entre público e privado, o caso das joias deixou evidentes as zonas cinzentas na regulação a respeito desse tipo de presente aos mandatários brasileiros. “Não existe uma norma clara”, afirma Paulo Amador da Cunha Bueno, advogado do ex-presidente. Isso ficou patente no depoimento da própria servidora do GADH que menciona Michelle. Ela cita que, apesar de haver lei, decreto e acórdão do TCU que versam sobre a catalogação e destinação dos itens, há certa arbitrariedade na forma com que o procedimento é feito no GADH. Isso porque os itens — que são separados em acervo público e acervo privado de interesse público — têm sua definição dada pelo chefe de gabinete em “conversa informal”. A subjetividade na aplicação da regra, somada às confusões de Bolsonaro e sua turma, pode ter produzido a trapalhada mais reluzente dos últimos tempos. Tomara que o caso sirva ao menos para estabelecer procedimentos cristalinos para essas situações.