America do Sul faz fila para falar com Lula
Foto: Esteban Collazo/AFP
O próximo passo da estratégia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de resgatar o papel de protagonismo do Brasil no cenário internacional será dado amanhã, em Brasília, na reunião de cúpula dos países da América do Sul. Dos 12 vizinhos continentais, apenas o Peru não enviará seu chefe de Estado. O país vive uma crise institucional e política desde que o então presidente, Pedro Castillo, deflagou uma tentativa de golpe e foi deposto, em dezembro do ano passado.
Mas a crise peruana não é um caso isolado. É só mais um exemplo da instabilidade política e econômica que atinge praticamente todos os países do subcontinente, e que marcará a reunião na capital brasileira. Até a tarde de hoje, todos os líderes devem desembarcar em Brasília, e o Itamaraty trabalha com a possibilidade de promover alguns encontros bilaterais antes do início da reunião de amanhã.
O primeiro a chegar à capital brasileira foi o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, na noite de ontem. Por causa da presença de tantos chefes de Estado, a Polícia Federal pediu reforço à PM do DF na segurança de embaixadas e hotéis.
Outro fator relevante da cúpula está na diversidade ideológica dos presidentes. A América do Sul não vive nem uma onda vermelha, progressista, nem uma maré conservadora. Também não tem, por falta de articulação nos últimos anos, nenhuma organização multilateral que sirva de fórum para debater problemas comuns. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada em 2008, tinha essa pretensão, mas está desativada desde que Jair Bolsonaro chegou ao poder, em 2019.
O então presidente via a entidade como um bloco de governos de esquerda, e aderiu à articulação de Colômbia e Chile para a criação do Prosul, um fórum de países governados pela direita, que ascendeu ao poder em meados da década passada. Com as mudanças de governo ditadas por eleições democráticas, em que não houve predomínio continental de uma ou outra corrente ideológica, as duas entidades fracassaram.
Um dos principais objetivos do presidente brasileiro é resgatar a união dos vizinhos em torno de uma nova (ou repaginada) entidade multilateral, dessa vez, sem viés ideológico, como explicou a secretária de América Latina e Caribe do Itamaraty, embaixadora Gisela Padovan, ao apresentar o desenho do encontro de cúpula. “Nós temos a consciência de que há diferenças de visão entre os vários países, diferenças ideológicas, e, por isso mesmo, consideramos um começo: que os países se sentem à mesa e dialoguem, busquem pontos em comum para retomar esse movimento tão importante.”
Por enquanto, em comum, está o fato de que cada país vive uma crise particular em cenário de baixo crescimento. O Brasil, após a troca de comando ditada pelas eleições de 2022, enfrenta uma disputa política entre um governo progressista e um Congresso majoritariamente conservador, o que dificulta a implementação de políticas públicas prometidas durante a campanha eleitoral e cria um horizonte de incertezas em relação à retomada do crescimento econômico.
Como é o anfitrião do encontro, o presidente Lula propõe uma agenda aberta, sem pontos específicos para serem discutidos. Mas apresentará aos vizinhos, além da proposta de criação de uma entidade que represente o subcontinente, duas questões que são tratadas como prioridade pelo governo brasileiro: a oferta de mecanismos de ajuda econômica à Argentina — segunda maior economia da América do Sul, que vive uma severa crise econômica e hiperinflação — e a reinserção da Venezuela na rotina diplomática e comercial da região.
No caso da Venezuela, será a primeira participação do presidente Nicolás Maduro em uma reunião com o Brasil desde que Bolsonaro rompeu laços diplomáticos históricos com o vizinho do Norte, fechando a embaixada brasileira em Caracas e todos os consulados. No ano passado, o então presidente ainda decretou a proibição da entrada de Maduro no Brasil. Com Lula no poder, a embaixada já foi reaberta e, agora, estão sendo finalizadas as ações para reabertura dos consulados.
“Foi o caso mais pronto e acabado da irresponsabilidade do governo anterior, que deixou mais de 20 mil brasileiros sem assistência consular”, criticou um embaixador com trânsito nos países vizinhos. Ele ainda aponta outro problema grave, que foi a suspensão das negociações da dívida que a Venezuela tem com o Brasil. “Como cobrar uma dívida se não tínhamos nem embaixador?”, questiona. Além disso, o comércio entre os dois países despencou nos últimos quatro anos, caindo de US$ 6 bilhões para pouco mais US$ 1,2 bilhão.
Na reunião de Brasília, os presidentes buscarão agendas comuns, como a integração física dos países da América do Sul por meio de rodovias, ferrovias e dutos; políticas de enfrentamento ao crime organizado nas regiões de fronteira e convergências em relação aos movimentos migratórios no subcontinente.
A situação da Argentina, com dificuldades na sua balança de pagamentos, é vista como um fator que põe em risco as tentativas de estabilização econômica da América do Sul e impede, no médio prazo, a criação de uma moeda comum para os negócios entre países da região. A quebra das últimas safras, em decorrência da seca, agravou ainda mais a situação.
Para o presidente Lula, é preciso que os países que mantêm grande ligação comercial com os argentinos (como o Brasil, que tem no país vizinho seu terceiro maior parceiro) criem mecanismos de ajuda, principalmente na forma de financiamento de exportações. Na semana passada, ele citou, em uma palestra para empresários, o fato de que a China já abriu cerca de U$ 30 bilhões em linhas de crédito para financiar as vendas de produtos chineses à Argentina.
Além da situação econômica, o país enfrentará eleições presidenciais em outubro, e o cenário não permite nenhuma previsão segura. A única certeza é que os peronistas — principal força política — terão um candidato para disputa do poder. Só não se sabe quem será. Tanto o atual presidente, Alberto Fernández, quanto à vice, Cristina Kirchner, desistiram da disputa. Na oposição, nomes mais conservadores ainda buscam consolidar posições junto ao eleitorado.
É o caso do governador de Buenos Aires, Horácio Larreta, e do ultraliberal Javier Milei, que tenta liderar uma coligação que inclua a extrema-direita. Em Brasília, Alberto Fernández vai tentar articular alguma ajuda dos vizinhos para que a Argentina atravesse o período pré-eleitoral com um mínimo de amparo econômico.
Sócios fundadores do Mercosul, Paraguai e Uruguai têm preocupações diferentes. Enquanto os paraguaios atravessam um período de transição de governo, com a vitória, em abril, do conservador Santiago Peña nas eleições presidenciais, o Uruguai só enfrentará o processo sucessório no ano que vem. Em comum, os dois países atravessam uma fase de louvável crescimento econômico. A economia paraguaia deve crescer mais de 4% neste ano, enquanto a uruguaia, depois de uma expansão de quase 5% no ano passado, deve desacelerar em 2023 para 2%. Mesmo assim, um crescimento esperado maior que o Brasil, estimado em 1%.
Na relação bilateral, o Paraguai tem uma pauta estratégica com o Brasil, que é a comercialização da energia da hidrelétrica de Itaipu, uma sociedade dos dois países. O acordo que previa a exclusividade brasileira na aquisição da geração excedente do Paraguai expirou, e a binacional entra agora em regime de economia de mercado, tirando do Brasil uma das principais vantagens econômicas que tinha com o empreendimento e que durou cinco décadas.
Já o Uruguai é o país mais resistente a acordos no âmbito do Mercosul. O vizinho do Sul defende a liberdade de fechar parcerias bilaterais, sem as amarras do bloco econômico. Mas a posição dos demais sócios, capitaneada pelo Brasil, é que o Mercosul é um dos pilares da união econômica dos países associados. “Se o Uruguai quer as vantagens do Mercosul, terá que cumprir as regras do bloco”, alerta o diplomata ouvido pelo Correio. O atual governo de Luis Lacalle Poul também mantém uma postura crítica ao governo da Venezuela e, segundo fontes da diplomacia celeste, não apoia a recriação da Unasul nos moldes anteriores.
O Chile, que já foi uma ilha de prosperidade e estabilidade na América do Sul, enfrenta a segunda tentativa de construir uma nova Constituição. O governo de esquerda de Gabriel Boric fracassou na tentativa de promulgar uma Carta elaborada por uma Constituinte majoritariamente de esquerda. A população do país rejeitou o projeto, e uma nova Constituinte foi eleita, dessa vez, composta, em sua maioria, por conservadores.
A Colômbia vive um momento de mudanças no governo. Com dificuldades de cumprir sua agenda progressista de reformas trabalhistas, previdenciárias e na área da saúde, o presidente de esquerda Gustavo Petro demitiu, em abril, sete ministros, em meio a mais grave crise política de seu mandato, que começou em agosto do ano passado.
O Equador, por sua vez, atravessa uma recente crise institucional, que tenta ser resolvida dentro dos marcos constitucionais do país. Na semana retrasada, o presidente Guillermo Lasso dissolveu a Assembleia Nacional para evitar o avanço do processo de impeachment contra ele. Com isso, ficou obrigado a convocar eleições presidenciais, em um movimento chamado de “morte dupla”. Na última quarta-feira (24/5), o Conselho Nacional Eleitoral do Equador marcou o pleito para 20 de agosto. Até a posse do novo presidente, Lasso governará o Equador por decreto. É nessa situação, sem ter se decidido ainda se tentará manter-se no cargo pela via eleitoral, que ele virá a Brasília.
Aproveitando um período de estabilidade política e institucional, a Bolívia virá ao Brasil com uma agenda pragmática, estruturada na exploração de recursos minerais, uma das principais atividades econômicas do país. Com o declínio da produção de gás natural, que tinha no Brasil o principal comprador, o país busca parcerias para ampliar a extração de metais valiosos para o processo de transição energética, como o lítio, usado na fabricação de baterias.
Em comum, esses quatro países compartilham o interesse de construir, com o Brasil, uma infraestrutura que amplie a integração logística da América do Sul, com a ampliação do corredor bioceânico, uma rede de estradas que une o Atlântico ao Pacífico. A integração física pode incrementar a exportação de commodities agrícolas e minerais da região.
Com peso pequeno na economia da América do Sul, Guiana e Suriname ganharam, nos últimos meses, um papel de destaque geopolítico raro: os dois países já exploram petróleo na costa do Atlântico, em condições similares a que a Petrobras encontrou na chamada margem equatorial, e que vem sendo alvo de polêmicas em torno do impacto ambiental na foz do Rio Amazonas. As experiências e pesquisas dos dois pequenos países do extremo norte do subcontinente estão sendo avaliadas e podem ser compartilhadas pelos dois presidentes na reunião em Brasília.