Conheça a primeira embaixadora do Brasil nos EUA
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
Com uma extensa ficha de serviços prestados às relações exteriores do Brasil em cargos relevantes, a diplomata Maria Luiza Viotti, 69 anos, está de malas prontas novamente. Ela será a primeira mulher a assumir o comando da embaixada brasileira em Washington, considerada a mais importante representação no exterior. Entre uma missão e outra, a embaixadora sempre volta a Brasília, cidade que a acolhe quando não está fora do país e é considerada por ela a melhor para se viver no Brasil.
Aqui, Viotti cursou ciências econômicas na Associação de Ensino Unificado e mestrado em economia na Universidade de Brasília (UnB). No exterior, comandou a embaixada na Alemanha e a representação permanente do Brasil nas Nações Unidas. De 2017 até o ano passado, ela chefiou o gabinete do secretário-geral da ONU, António Guterres.
A embaixadora fala dos interesses comuns de defesa da democracia e preservação do meio ambiente, das relações com os EUA — um dos maiores investidores e segundo maior parceiro comercial do Brasil — e da janela de oportunidade que se abre nas áreas da transição energética e da sustentabilidade socioambiental. “Tem havido um diálogo, um mecanismo que temos discutido para essas questões e que tem demonstrado um grande interesse. Por exemplo, interesses da Boeing, para investir nessa área de combustíveis sustentáveis de aviação. E há muito potencial também em outras energias, eólica e solar”, destaca.
Viotti também aponta como uma das prioridades da agenda do governo Lula a reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que ganha cada vez mais apoio entre os países. “Acho que os argumentos em favor da reforma são compartilhados pela grande maioria dos países. Há um reconhecimento de que o Conselho de Segurança da ONU, com a composição atual, não guarda relação com a ordem atual, e sim, com a do pós-guerra”, avalia. Veja os principais trechos da entrevista:
A senhora é a primeira mulher a ocupar a chefia da embaixada mais importante do país (Washington) pelo peso dos Estados Unidos, como potência econômica e militar, pela importância das relações dos EUA com o Brasil e pela importância dos EUA no cenário mundial. É um marco histórico da diplomacia brasileira em um momento singular na relação entre os dois países. O que representa a sua designação e como a senhora vê a participação das mulheres em uma área do Estado até pouco tempo amplamente dominada por homens?
A designação para a chefia de um posto em Washington, pelas razões que vocês descreveram, é altamente honrosa para qualquer diplomata, seja homem, seja mulher. Mas, pelo fato de que, pela primeira vez, uma mulher seja designada para essa função não deixa de ser um marco. Mas posso dizer que isso está acontecendo com um certo atraso, não é por falta de mulheres competentes que tem havido ainda uma embaixadora à frente da embaixada em Washington. Mas o importante é que o atual governo está muito comprometido com a igualdade de gênero, tem tomado medidas bastante expressivas nesse sentido. Temos, hoje, a primeira mulher secretária-geral das Relações Exteriores, que é o posto mais elevado da carreira, Maria Laura da Rocha. Temos entre as altas chefias do Itamaraty três mulheres, um número que é inédito. Haverá novas indicações de novas embaixadoras, como anunciou o ministro Mauro Vieira à Comissão de Relações Exteriores do Senado. Há demonstrações claras do compromisso deste governo com a igualdade de gênero.
Essas nomeações são suficientes?
É preciso sempre fazer mais, precisamos de mais mulheres em posições de liderança no Brasil em geral, não só no Itamaraty. Até que chegue o momento — e espero que chegue logo — em que a presença de mulheres em funções de liderança não seja mais algo excepcional, seja visto como algo normal, como deve ser.
Esse é um movimento que vem acontecendo, principalmente nos países mais democráticos, que é o aumento da presença de mulheres na diplomacia. Como a senhora vê esse movimento?
É verdade, tem havido um avanço, sem dúvida nenhuma. Notei isso na ONU, por exemplo. O número de embaixadoras mulheres cresceu muito nos últimos anos. Quando fui representante permanente éramos cerca de 15 mulheres, quando eu saí estávamos em 25, um crescimento importante. Mesmo assim, 25 em 193 é pouco.
A senhora é economista, como foi a virada para a diplomacia?
Foi acontecendo. Quando entrei para a faculdade de economia achava o curso muito interessante, mas não me via trabalhando como economista. Quando soube do concurso para o Instituto Rio Branco (ligado ao Itamaraty, que forma os diplomatas brasileiros), e meu pai me estimulou muito, resolvi tentar a carreira diplomática porque achava extremamente interessante a possibilidade de defender os interesses do Brasil no exterior, conhecer outros países, trabalhar numa área muito diversa em termos de disciplinas.
A sua vida acadêmica reforçou a relação que a senhora tem com Brasília, uma cidade que faz parte da sua trajetória há muito tempo. O que representa Brasília na sua formação, na sua vida pessoal?
É uma relação muito próxima. Vim para cá em 1976 e, desde então, estive no exterior por alguns anos, mas fiz uma carreira não muito típica. O normal da carreira diplomática é assumir um posto (no exterior) e emendar com um segundo posto. São seis anos, em geral, fora e três anos no Brasil. Em função da vida familiar, eu fazia sempre um posto e voltava para Brasília. Brasília sempre foi muito parte da minha vida. É uma cidade que eu tenho o prazer de encontrar cada vez melhor.
E como está Brasília, hoje?
Desta vez, quando voltei do exterior, fiquei muito surpreendida. É uma cidade com qualidade de vida que é difícil de se encontrar em cidades brasileiras, com muito verde, com muito espaço. A única coisa que eu acho que falta a Brasília é uma vida cultural no nível que se espera de uma capital.
Ainda mais por ser uma cidade-monumento…
É incompreensível que a gente tenha ficado com o Teatro Nacional fechado por tantos anos. É claro que temos o Clube do Choro, que é ótimo. Houve toda uma geração de roqueiros daqui de Brasília. Sem dúvida, há um movimento cultural importante, mas falta um pouco de infraestrutura que possa permitir que a cidade se desenvolva como seria de esperar.
Como mudar a visão dos Estados Unidos em relação ao Brasil, que fica em segundo plano nas prioridades dos EUA, hoje muito mais preocupado com a guerra na Ucrânia, a China, e dá pouca atenção à agenda sobre América Latina? No governo Bolsonaro, a relação com o Brasil praticamente sumiu do
radar dos americanos…
Não sei se o Brasil está tão em segundo plano assim. É claro que as prioridades (para os EUA) são Ucrânia, China, sem dúvida nenhuma. Mas o Brasil, pelo fato de ser um grande país, ter uma economia importante, que tem uma influência grande fora da região (América do Sul), passa a ser visto não só no contexto da América Latina. O Brasil se descolou um pouco da América Latina na percepção internacional, porque é visto como um grande país em desenvolvimento, influente no Sul global, como se costuma dizer. Há um olhar diferenciado com o Brasil, e isso ficou muito patente durante a visita do presidente Lula e no número de visitas que se seguiram. Tivemos o John Kerry, tivemos representantes do comércio, a embaixadora Katherine Tai, a embaixadora Linda Thomas Thomas-Greenfield, que veio ao Brasil tratar de temas como segurança, e outros. Eu acho que o Brasil tem tido uma atenção especial nos Estados Unidos. Nós vamos comemorar o bicentenário das relações bilaterais no ano que vem. Nesse contexto, o presidente Lula fez um convite ao presidente Biden para visitar o Brasil e ele aceitou.
Pode ser na reunião do G20, que será no Brasil, em 2024?
Quem sabe, talvez antes…
Há um interesse comum entre Lula e Biden de fortalecer os organismos multilaterais, como a ONU, a OMC (Organização Mundial do Comércio), que passaram os últimos anos sob muita pressão de um mundo mais individualista, com os países muito mais voltados aos seus próprios problemas do que em soluções negociadas em âmbito coletivo. Esse interesse se mantém?
Tem havido, de fato, uma percepção maior por parte dos Estados Unidos sobre a importância de uma reforma (desses organismos). Eles falam mesmo de uma reforma da ONU, inclusive da reforma do Conselho de Segurança. No comunicado conjunto (assinado por Lula e Biden, em Washington), há um registro muito importante sobre a intenção dos dois países, dos dois presidentes trabalharem juntos para a reforma do Conselho de Segurança da ONU, que possa envolver uma expansão do órgão com novos assentos permanentes para países da América Latina e da África. Há uma disposição dos EUA de trabalharem conosco nessa questão. Em relação à OMC, os americanos também falam na possibilidade de reforçar (o órgão), sobretudo nessa questão de solução de controvérsias. É claro que eles têm dificuldades em relação à participação da China e isso é que fez com que eles se distanciassem um pouco da OMC. Mas é muito importante que haja essa disposição do governo norte americano de voltar a olhar para OMC como uma instituição importante para favorecer o comércio internacional.
Brasil e Estados Unidos têm visões diferentes em relação a Cuba e Venezuela. Como fica a agenda em relação a esses dois países?
A secretária-geral (Maria Laura da Rocha) acaba de voltar dos Estados Unidos, onde teve reuniões com a sua homóloga norte americana (Wendy Sherman), e esse tema figurou na agenda. Houve uma troca de informações, de avaliações sobre a situação na Venezuela e em Cuba. O governo norte-americano vê o Brasil como um país que tem uma influência estabilizadora na região. Há uma valorização do nosso diálogo sobre esses temas e interesse em manter contatos com o Brasil sobre esses dois países.
Em relação à comunidade brasileira nos Estados Unidos. Qual é o olhar e o tratamento da embaixada aos imigrantes ilegais?
O que a embaixada tem feito é atuar por intermédio dos consulados. Nós temos uma rede consular bastante grande, com 11 consulados-gerais. Basicamente, os que estão próximos da fronteira, como Houston (Texas), e outros que que prestam maior assistência às comunidades brasileiras. O número de brasileiros detidos na fronteira aumentou muito desde o fim de 2021 e em 2022. E isso exige uma atenção constante da nossa parte para prestar assistência. E o Itamaraty tem atuado no sentido de alertar sobre os riscos dessa imigração irregular.
Atualmente, vemos mais empresas chinesas investindo no país, e empresas europeias, como suíça Zurich Airport, que arrematou semana passada o aeroporto de São Gonçalo do Amarante (RN). Enquanto isso, companhias americanas deixaram o Brasil, como a Ford. Esse desinteresse crescente das empresas dos EUA pode ser superado?
Eu vejo que há um grande interesse, por exemplo, na área de transição energética, energias limpas. Por exemplo, interesses da (fabricante de aviões) Boeing para investir nessa área de combustíveis sustentáveis de aviação. E há muito potencial também em outras energias, como eólica e solar. Esse interesse tem se manifestado. Nós acabamos de receber uma visita de representantes do Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos, aqui no Itamaraty. E me parece que há um interesse bastante grande em retomar o contato nessa área empresarial. Nós retomamos o Fórum de CEOs, que acaba de ser reconstituído. São nove altos executivos de cada lado, que tem se reunido com certa regularidade. Um diálogo que ficou um pouco paralisado nos últimos dois anos.
Na visita do presidente Lula aos Estados Unidos, parece que a intenção do Brasil de integrar a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) foi ignorada ou relegada a segundo plano..
Não foi relegada, não. Nós temos uma cooperação com a OCDE que vem de alguns anos. Participamos da maioria dos grupos de trabalho da OCDE, e o que está havendo é uma reavaliação por parte deste governo sobre o processo, que é complexo. Envolve mudança de legislação que demora muito tempo. Nós estamos avançando também na questão tributária, com a nova proposta de reforma tributária. Isso pode ajudar, mas é um processo que é demorado e que deve prosseguir, mas que está sendo objeto de uma reavaliação.
Qual é a sua prioridade para quando a senhora se sentar na cadeira de embaixadora em Washington?
Acho que vou ter uma grande lista (risos). Uma prioridade central vai ser tentar contribuir para dar mais concretude a essa agenda da sustentabilidade. Há esforços que estão sendo feitos aqui no Itamaraty, juntamente com o Ministério do Meio Ambiente, para identificar quais são as ações prioritárias. E a embaixada vai estar muito envolvida nesse processo. Nós temos dificuldades que são as dificuldades tradicionais de relacionamento com os Estados Unidos, a questão de acesso aos mercados. Por exemplo, há barreiras na área de produtos siderúrgicos e o problema da carne, que eu já mencionei. Então, essas questões vão estar sempre com alta prioridade na agenda da embaixada. E são questões que têm a ver com o dia a dia da atuação do embaixador, não só junto ao Executivo norte-americano, mas ao Congresso. Há uma agenda de opinião pública que é importante também.
A imagem do Brasil está ruim nos Estados Unidos?
Não tenho notado nada assim que tenha me chamado a atenção em termos negativos.
Como está o termômetro para a reforma no Conselho de Segurança da ONU?
Os argumentos em favor da reforma são compartilhados pela grande maioria dos países, há um reconhecimento de que o Conselho de Segurança da ONU, com a composição atual, não guarda relação com a ordem atual, e sim, com a do pós-guerra. Então, há a necessidade de uma reforma que possa adequar o Conselho de Segurança a essas novas realidades políticas internacionais. O próprio discurso do presidente Biden, na Assembleia Geral da ONU, foi um pouco o que está refletido no comunicado conjunto conosco. Em relação à necessidade de uma reforma, acho que avançou muito o debate. O debate, hoje em dia, não questiona mais a necessidade de reforma. A questão é saber qual é a reforma e quais são os países que vão ser contemplados nessa reforma.