Demarcação de terras indígenas irrita ruralistas
Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
O “desconvite” ao ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, para comparecer à abertura da Agrishow de Ribeirão Preto expôs a distância entre o agronegócio e o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com ecos que vêm desde a campanha eleitoral, mas alguns canais de diálogo já foram criados para uma reaproximação. Ou, pelo menos, uma tentativa de acomodação.
Há várias frentes e atores envolvidos na tarefa, centrada no Ministério da Agricultura, mas que passa também por órgãos como os ministérios do Desenvolvimento Agrário e do Meio Ambiente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além de interlocutores distintos que tramitam entre o poder político e empresarial.
Da parte do agronegócio, o ranço persiste em razão da agenda do governo, com a retomada das demarcações de terras indígenas, a contrariedade do presidente Lula ao marco temporal sobre essas terras, em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), além dos laços históricos entre o PT e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que promoveu no mês passado uma série de invasões, inclusive em áreas produtivas e de pesquisa que pertencem à União.
O agro não deve se comportar como um partido político”
— Nilson Leitão
A recente viagem do presidente à China, com uma comitiva de empresários, incluindo nomes do agronegócio, era para ser mais um passo na reaproximação, mas a presença nela de João Pedro Stédile, um dos líderes do MST, acabou estremecendo mais a relação.
Na definição de um auxiliar de Fávaro, que pediu para não ser identificado, “alguns produtores e associações ainda não saíram da porta dos quartéis”, referência aos bolsonaristas que acamparam em frente a unidades do Exército em todo o país e pediam golpe contra o presidente eleito.
No ano passado, ao participar da Conferência do Clima das Nações Unidas no Egito após ser eleito, Lula afirmou sobre os empresários do agronegócio, setor que apoiou majoritariamente o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL): “Não quero que gostem [de mim], mas que me respeitem”. Respeito é exatamente o que pregam produtores e empresários envolvidos na tentativa de criar boas relações com o governo.
“A questão política é uma ferida que precisa ser curada, mas precisa de tempo”, disse João Carlos Marchesan, primeiro vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) e defensor da pacificação. Ele reconhece a existência de um rescaldo eleitoral, mas diz que se trata de uma minoria no setor.
R$ 2 bi é valor da linha do BNDES para o agro
Os interesses comerciais também são cruciais na relação. Dados da Abimaq mostram que mais de 50% das máquinas agrícolas existentes no Brasil têm mais de dez anos de uso, o que levará a uma necessária substituição a curto prazo. A conjuntura interna e externa, com uma variação do preço do dólar que afetou ainda mais o valor da soja e do milho, além de fatores climáticos como a seca vista atualmente no Rio Grande do Sul, tornam os benefícios governamentais ainda mais atraentes.
No mês passado, o Ministério da Agricultura e o BNDES anunciaram a criação de uma linha de crédito destinada para financiar a compra de equipamentos agrícolas, silos, estrutura de armazenagem, entre outros itens. O objetivo é que o programa resulte em uma oferta de crédito de R$ 2 bilhões. Ele seria apresentado na Agrishow pelo próprio Fávaro, mas com a polêmica que o deixou de fora, a apresentação caberá a uma equipe do ministério e do BNDES enviada ao evento.
A resistência do agro a Lula costuma ser maior entre pequenos e médios produtores, em especial aqueles que não são exportadores, mas analistas e integrantes do setor ouvidos pelo Valor dizem que é impossível fazer uma relação de ordem socioeconômica ou geográfica.
“O agro não deve se comportar como um partido político”, afirma Nilson Leitão, ex-deputado federal que dirige o Instituto Pensar Agropecuária, instituição de lobby que representa mais de 50 entidades. Apoiador de Bolsonaro, Leitão fez carreira no Mato Grosso, Estado que é o maior produtor de grãos do país e onde o ex-presidente teve a maioria dos votos nas últimas duas eleições presidenciais. O dirigente do instituto já foi investigado no STF por incitar a invasão e negociar títulos de posse da terra indígena Marãiwatsédé (MT), região que registra conflito com produtores desde os anos 1960.
“É um equívoco escolher lado, a eleição já acabou. Não podemos misturar os papéis. As diferenças de pensamento não podem nos afastar do que mais importa”, ressaltou Leitão, dizendo que alguns produtores estão, por motivo político-ideológico, “promovendo a animosidade”.
O presidente da Pensar Agropecuária conta ter participado de encontros com autoridades do governo como o secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, João Capobianco, a quem diz ter recebido duas vezes, além do ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira. “Tenho procurado diálogo e tentado atender as demandas para diminuir o grau de tensão”, confirmou Teixeira.
O assunto gera inquietação entre os produtores. Muitos não quiseram se manifestar a respeito, caso da diretoria nacional da Aprosoja, apontada por integrantes do governo Lula como uma das mais radicais. Paulo Maximiano Junqueira Neto, presidente do Sindicato Rural de Ribeirão Preto e incentivador da presença de Bolsonaro na Agrishow “em razão de tudo o que ele fez para o agro”, criticou o governo federal por estar, segundo ele, “agindo como quem não deseja” ter boas relações. “É a maior feira do setor na América Latina, mas nem o presidente nem o ministro vão comparecer. Como é essa aproximação?”
José Antônio Ribas Júnior, presidente do Sindicato da Indústria de Carne e Derivados (Sindicarne) de Santa Catarina e também executivo da JBS Foods, disse ao Valor – na condição de representante sindical – que os empresários do Estado, maior produtor de carne suína do país e de imensa maioria bolsonarista, já estão resignados com o novo governo.
“Temos um governo legitimamente eleito e temos que ter relação com ele. O agro precisa sempre ser pensado como política de Estado, temos que virar essa página”, declarou. Para ele, o episódio na feira de Ribeirão Preto é um “desserviço”. A questão principal para o agro, diz Ribas Júnior, é a segurança jurídica, citando as invasões do MST como um “ponto de divergência real” com a postura do governo.