Glenn fala em desespero e tristeza após morte do marido

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Foto: Ronny Santos – 15.mar.2022/Folhapress

Cerca de um mês antes da morte do ex-deputado federal David Miranda, ocorrida nesta terça-feira (9), o jornalista Glenn Greenwald relatou em um longo texto os desafios que vinha enfrentando desde a internação do marido em uma UTI, em 6 de agosto do ano passado, e as descobertas que o fortaleceram para que pudesse seguir amparando a sua família e a si mesmo nos últimos meses.

“O desespero, medo e a tristeza estão em um patamar diferente de qualquer coisa que eu tenha vivido”, escreveu Glenn, em um dos raros momentos em que se dispôs a falar sobre a sua experiência pessoal com a crise de saúde do marido.

Os dois estavam juntos havia 17 anos e tinham dois filhos juntos.

No texto, que foi publicado em uma página pessoal, o jornalista afirmou que “os inesperados e repetidos flertes com a morte” vividos pelo companheiro de 37 anos em nada se comparavam às mais tristes situações que já tinha experimentado até então. E que o fato de precisar ajudar os filhos a lidar com a ausência de um dos pais e prepará-los para a possibilidade da morte tornava tudo ainda mais difícil.

“Eu não posso resolver a questão que está causando tanto sofrimento a eles. Nunca me deparei com dor maior do que a impotência de ver meus filhos sofrendo sem poder fazer o sofrimento parar”, escreveu.

“Ao mesmo tempo, essa responsabilidade de cuidar, apoiar e dar força para nossos filhos tem sido a minha fonte mais potente de motivação e energia. Os momentos em que eu fui capaz de, de algum modo, aplacar o sofrimento deles, ou quando eles me oferecem momentos de leveza e alívio, são momentos que eu nunca vou me esquecer”, afirmou ainda.

Glenn ainda relatou que foram três as ocasiões em que foi alertado por médicos de que o ex-deputado tinha chances muito baixas de sobrevivência —mas que ele vinha melhorando mês a mês.

“Esse progresso, entretanto, é invariavelmente lento, incremental, árduo e quase sempre interrompido por percalços e complicações alarmantes, devastadores, emocionalmente destrutivos e, em algumas ocasiões, potencialmente fatais”, disse o jornalista. “Ainda assim, de forma que os médicos até hoje têm dificuldades em explicar totalmente, David atravessou todas essas crises e continua melhorando.”

O jornalista contou que, recentemente, conseguiu passar até 12 horas com o marido no hospital, onde assistiam a filmes e séries juntos e conseguiam conversar. “É difícil expressar a quantidade de alegria, felicidade e gratidão que sinto quando podemos compartilhar esses momentos —por menores que sejam. É uma alegria diferente de qualquer outra que eu já tenha sentido”, disse.

“Esses dias, especialmente nos finais de semana, eu acordo animado e ansioso. Não porque eu tenha alguma coisa glamourosa ou exótica programada. É porque, pelo menos por enquanto, eu posso fazer algo que até agosto do ano passado eu podia fazer todo dia e considerava banal, trivial e sem razão para celebrações: sentar e jogar conversa fora com a pessoa para quem eu nasci, minha alma gêmea, meu melhor amigo e o amor da minha vida”, disse Glenn.

Apesar de toda a carga dos oito meses de internação, afirmou Glenn, David não apresentava mudanças em sua personalidade, memória, senso de humor e até mesmo na forma de “reclamar carinhosamente”, “como só um cônjuge de 17 anos é capaz de reclamar e resmungar”.

No artigo, o jornalista conclui que a experiência trouxe, sobretudo, a noção de que a saúde não é uma garantia dada a ninguém, e que a busca ativa por um sentimento de gratidão o ajudou a ter uma outra perspectiva para levar os últimos meses, enquanto o marido permanecia internado na UTI.

“Durante os primeiros dois meses da doença de David, a pior parte de cada dia era acordar. Naqueles primeiros segundos depois de despertar —antes de minhas defesas serem acionadas, antes de eu sequer conseguir me orientar ao estado de estar desperto—, uma onda de sofrimento me inundava quando eu lembrava o que estava acontecendo”, afirmou Glenn.

“Isso só mudou quando —seguindo um conselho sábio pelo qual sou enormemente grato— comecei deliberadamente a procurar a gratidão como a primeira coisa ao acordar. Em vez de me afundar no desespero e focar no que era ruim (a ausência de David e sua doença potencialmente fatal), escolhi me concentrar no que era bom: David está vivo; nossos filhos estão saudáveis e são incríveis, bem ajustados, felizes e amorosos; eu tenho saúde e a capacidade de fazer tudo o que pode ser feito por David e nossos filhos”, disse ainda.

Leia, abaixo, alguns trechos do relato feito por Glenn:

“Ainda que em minha vida eu tenha atravessado aquelas situações tristes à que todos estamos sujeitos – a perda de meus avós e dos meus pais em particular -, os inesperados e repetidos flertes com a morte que meu marido de 37 anos, saudável e em forma, vem atravessando são distintos de qualquer coisa que eu poderia ter imaginado. O desespero, medo e a tristeza estão em um patamar diferente de qualquer coisa que eu tenha vivido. Isso continua permeando, física e emocionalmente, cada segundo do meu dia.”

[…]

“Não vou nem tentar explicar a sensação de ter que contar para meus filhos e para a família e amigos do David que era hora de ir ao hospital, quem sabe pela última vez, para vê-lo. Tampouco vou tentar colocar em palavras a sensação de colocar de lado a dura tarefa de lidar com essa notícia em favor da tarefa de ajudar nossos filhos a fazer o mesmo. Ainda assim, de forma que os médicos até hoje têm dificuldades em explicar totalmente, David atravessou todas essas crises e continua melhorando.”

[…]

“Obviamente, não há muitas opções de lazer num quarto de UTI. Sentar ao lado de sua cama para conversar e assistir séries e filmes juntos é basicamente tudo o que podemos fazer por enquanto. É difícil expressar a quantidade de alegria, felicidade e gratidão que sinto quando podemos compartilhar esses momentos – por menores que sejam. É uma alegria diferente de qualquer outra que eu já tenha sentido.”

[…]

“Quantas vezes nesse processo eu acreditei que ele finalmente estava ficando bom, só para depois receber uma ligação dos médicos e vê-lo piorar de novo. Essa talvez seja uma das coisas mais cruéis desse processo todo. Mesmo nos melhores dias há uma voz no fundo da minha cabeça que se pergunta se não haveria mais uma infecção à espreita, ou um vírus prestes a retornar, para mais uma vez obrigar os médicos a administrar um remédio tóxico que vai exigir ainda mais do seu fígado e da sua medula.”

[…]

“A realidade é que isso não surgiu com a internação de David. Isso sempre foi verdade. A gente é que não tinha se dado conta. Desde 2005, quando David e eu passamos a dividir nossas vidas, construir nossas carreiras juntos, começamos a criar nossos filhos, acordávamos e dormíamos e comíamos e saíamos achando – devido à nossa idade e à nossa arrogância – que tínhamos pela frente décadas de saúde. Como se fosse certo. Como se o universo nos desse uma garantia, um contrato que nos permitia achar que isso era nosso de direito, e que ninguém poderia tomar de nós. A gente achava que era uma certeza. E por isso, não demos o devido valor.”

[…]

“Não há nada que podem me oferecer – dinheiro, viagens, sucesso, presentes – que chegue perto à intensidade da alegria que sinto por poder mais uma vez conversar com David sobre tudo e nada: lembrar de histórias do passado, fazer planos para o futuro (quem sabe adotar uma menina para que nossos filhos possam ter uma irmãzinha?), ouvir suas opiniões sobre meu novo programa no Rumble que ele finalmente está tendo a oportunidade de assistir (em sua maioria opiniões positivas, mas sem esquecer de algumas críticas pontuais estéticas, de formato e conteúdo), falar sobre as diversas questões referentes à criação dos nossos filhos, e ouvir ele reclamar que eu exagerei nos elogios a certos filmes e séries que eu fiz ele ver.”

[…]

“É extraordinário quanto tempo passamos nossas vidas correndo atrás das coisas que nos ensinaram a almejar e ambicionar quando aquilo que nos deixa mais felizes e realizados estão bem debaixo dos nossos narizes – frequentemente desvalorizadas porque parecem simples ou familiares. É alarmante que só o medo de perdê-las tenha sido capaz de nos fazer valorizar as coisas que temos.”

[…]

“A falta de permanência das coisas que nos proporcionam a maior felicidade não as torna menos valiosas. Pelo contrário. Sua impermanência é a razão para agarrá-las, mantê-las, apreciá-las e honrá-las todos os dias que as temos e podemos fazer isso.”

Folha