Presidente da Biblioteca Nacional denuncia censura
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
No início do mês, a Universidade de Rio Verde, em Goiás, censurou o livro de Marçal Aquino “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”. A retirada da obra da lista de indicações para o vestibular aconteceu por causa da pressão do deputado bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO). Não é episódio isolado. Em setembro de 2020, apoiadores de Jair Bolsonaro reagiram às críticas feitas por Paulo Coelho ao ex-presidente queimando obras do autor. Meses antes, a Secretaria de Educação de Rondônia determinou que 43 livros deveriam ser recolhidos das escolas públicas por serem considerados inadequadas para crianças e adolescentes. Entre os autores, Euclides da Cunha, Ferreira Gullar, Franz Kafka e Machado de Assis.
Para o presidente da Biblioteca Nacional (BN), Marco Lucchesi, o que tem acontecido no Brasil é uma forma fragmentada de censura que não tem recebido resposta adequada. “O que a gente vê é uma sociologia atomizada da censura. Isso é que é mais perigoso”, disse à coluna Lucchesi, escritor e historiador que é um dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL). “Há uma série de subgradações: passa pelo silêncio e pelo cancelamento, como se costuma dizer. São átomos de censura o tempo todo”. Nessa entrevista, ele pede que a sociedade brasileira fique atenta a esse perigo. Teme contágio da onda de obscurantismo crescente em países como os Estados Unidos, onde o número de títulos censurados em bibliotecas escolares e públicas bateu recorde no ano passado. Para enfrentar o fenômeno, Lucchesi propõe uma atuação em rede. “Com múltiplas vozes, as forças da sociedade decidiram entre ditadura e democracia. Agora temos que ficar atentos para esse macartismo de quinta categoria”. A seguir, os principais trechos da entrevista. Papel das bibliotecas nacionais Quando a Biblioteca Nacional produz metadados, é inversamente proporcional à produção de fake news. Aqui temos a preocupação com os dados, com a checagem, somos um centro ecumênico, não pode haver censura. As bibliotecas nacionais de todo o mundo serão cada vez mais a contraprova que rebate atitudes irresponsáveis, como fake news, por exemplo. Resposta ao fundamentalismo Na presidência da Academia Brasileira de Letras tive que fazer defesa em questões religiosas extremas. Fiz uma espécie de provocação: se a questão é pauta de costumes, vamos começar então censurando a Bíblia, que tem, por exemplo, o “Cântico dos Cânticos”, que é extremamente erótico. Tentava trabalhar na casa dessas argumentações. Mas parei porque percebi que poderiam levar a sério e não entender que era uma ironia. Exclusão de Marçal Aquino Constatamos que o fascismo e seus subprodutos estão vivos quando uma universidade perde a compreensão de qual é sua missão, que está baseada na autonomia. Essa situação tem acontecido no mundo inteiro. Lembremos que no ano passado Dostoievski e Tchaikovsky começaram a ser alvos de censura por causa da guerra entre Rússia e Ucrânia. A diferença é que quando essas ideias deploráveis vieram à tona, houve um sistema de proteção e de contra-ataque de altíssimo nível. Os intelectuais se posicionaram, as universidades entraram na questão. O mais horrível na questão do Marçal foi isso não ter acontecido. Átomos de censura A queima de um livro é uma imagem que não pode passar despercebida. O que a gente vê é uma sociologia atomizada da censura. Isso é que é mais perigoso. Ela passa por uma série de subgradações: passa pelo silêncio; pelo cancelamento, como se costuma dizer. São átomos de censura o tempo todo. Fica difícil reconstituir na memória esse projeto sistêmico que foi tomando conta a partir de lideranças que não são exclusivamente religiosas. É uma espécie de polícia dos costumes. Algo que existe institucionalizado em alguns países do Leste europeu. A cultura como inimiga O que temos visto, que levou inclusive ao 8 de janeiro, é o resultado de um grande projeto de destruição da cultura, onde a cultura é colocada como inimiga primeira. E passa pelos talibãs brasileiros, que deram facadas em um quadro de Di Cavalcanti, uma coisa impensável, que equivale à destruição dos budas no Afeganistão. São lideranças fundamentalistas que importam, sobretudo dos Estados Unidos, um macartismo revisto para os dias de hoje. Há uma luta entre uma perspectiva laica e uma perspectiva fundamentalista de ataque ao Estado de Direito. Retirada de livros nos EUA É um crime de lesa-cultura. Estamos tratando da missão de uma biblioteca, que é perseverar, manter, promover e difundir a memória social. É algo inacreditável. Retirar livros de uma biblioteca é um crime. O liberalismo fundamentalista Boa parte daqueles que hoje vemos implicados na censura se dizem liberais. O que se espera do liberalismo é mínima coerência histórica. Causa muita espécie que a pessoa seja liberal e tenha perspectiva fundamentalista. Temos que ficar atentos. Nós, do Brasil, estamos agora caminhando a largos passos para recriar o imaginário brasileiro, com múltiplas vozes, as forças da sociedade decidiram entre ditadura e democracia. Temos que ficar atentos para esse macartismo de quinta categoria. Solução é atuar em conjunto Imagino que devamos construir uma rede de observatórios, com Câmara, Senado, Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de Justiça, universidades. Tem que ser assim para que possamos dar conta desse caráter fragmentado da censura, que vem acontecendo de forma veloz e intensa. Na Constituição está dito que não pode haver censura. Mas entre o direito abstrato e a prática, devemos estar atentos.