Direita reclama de “Lava Jato às avessas”
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Um juiz superpoderoso que concentra em suas mãos processos de grande repercussão e adota decisões controversas a partir de aplicações inovadoras da lei.
Para alguns, a descrição se aplicaria facilmente à atuação do hoje senador Sergio Moro (União Brasil-PR) quando era juiz da Operação Lava Jato, à frente da 13ª Vara de Curitiba.
Para outros, ela define bem o desempenho de Alexandre de Moraes como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Mas seria correto aplicar a descrição a ambos?
A BBC News Brasil conversou com juristas para entender se o país vive uma espécie de “Lava Jato às avessas”, com métodos questionáveis usados na operação — que atingiu em especial o PT e outros partidos da base do governo de Dilma Rousseff — sendo adotados nas Cortes superiores, sob a liderança de Moraes, agora contra o campo bolsonarista e ex-integrantes da própria Lava Jato, como o deputado cassado pelo TSE Deltan Dalagnoll (Podemos-PR), antigo chefe da força-tarefa do Ministério Público Federal em Curitiba.
As avaliações são diversas (confira em detalhes ao longo da reportagem). Em geral, entrevistados apontam algumas semelhanças, em especial na grande concentração de casos importantes no gabinete de um mesmo magistrado, algo que parece desrespeitar o princípio do juiz natural, uma garantia constitucional que busca evitar perseguições com o direcionamento de investigações para determinado promotor ou juiz.
Por outro lado, também enfatizaram diferenças relevantes entre os dois casos, como a relação indevida de parceria entre o Ministério Público Federal e Sergio Moro, que não se repete na atuação da Procuradoria-Geral da República nas investigações sob relatoria de Moraes. Ou a obtenção de acordos de delação premiada após longas prisões preventivas, uma prática comum na Lava Jato que até hoje não foi usada nas investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados que tramitam no gabinete de Moraes.
Entre semelhanças e diferenças, decisões consideradas questionáveis foram tomadas por ambos. Por exemplo, quando Moro decretou em 2016 a condução coercitiva do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora de volta ao comando do país. A medida foi tomada mesmo sem uma convocação prévia para o petista depor, o que contrariava frontalmente o texto da lei, segundo especialistas.
Ou, no caso de Moraes, quando decidiu afastar o governador do Distrito Federal (DF), Ibanês Rocha, por 90 dias, após a invasão das sedes dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro. A decisão gerou controvérsia porque foi tomada sem pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e quando Lula já havia determinado a intervenção federal na área de segurança do DF.
Muita responsabilidade traz riscos maiores
Para Fábio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma (EUA) e autor de estudos sobre a Lava Jato, as grandes responsabilidades depositadas sobre o então juiz Sergio Moro (o combate à corrupção) e agora sobre Alexandre de Moraes (a defesa da democracia) trazem o risco de decisões controversas ou mesmo fora da lei.
“Tanto o Moro quanto o Alexandre são juízes que estão lidando com questões complexas e que têm uma ampla repercussão na sociedade e na política. Isso aproxima muito os dois. Mas os instrumentos que o juiz tem para interferir na realidade e conseguir enfrentar essas questões complexas são sempre muito limitados, porque o juiz age dentro da lei, ou pelo menos tem que agir”, afirma.
“Então, se fica tudo nas costas do juiz, seja enfrentar a corrupção, seja defender a democracia, o risco que existe de fazer um uso não autorizado desses instrumentos é sempre muito grande”, ressalta.
O advogado Horácio Neiva, doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, tem leitura semelhante. Para ele, tanto a atuação da Lava Jato como a de Moraes têm um traço em comum: a instrumentalização do direito na busca de um resultado. Essa instrumentalização, segundo Neiva, consiste em interpretar as leis de forma excepcional para alcançar determinado objetivo.
“No caso da Lava Jato, era a instrumentalização do direito para obter o resultado combate à corrupção. E agora, no caso (de Moraes), tem sido a instrumentalização sob o argumento de proteção à democracia”, afirma.
“O excesso de instrumentalização foi o que pegou a Lava Jato, o que permitiu uma reação (à operação). Quando você se afasta da legalidade estrita pontualmente, às vezes consegue justificar, mas quando é sistemático, não. Isso me parece que também é um risco para o Supremo e o TSE. Uma hora a exceção vai ter que parar, sob pena dela virar regra”, afirma Neiva.
Para o advogado, a grande concentração de casos nas mãos de Moro e Moraes ilustra bem essa instrumentalização. Embora a lei brasileira preveja que novas investigações que têm conexão com outras em andamento devem ser distribuídas por prevenção ao mesmo juiz, o advogado avalia que têm sido adotadas interpretações forçadas para manter casos distintos no gabinete do ministro, como ocorreu na Lava Jato.
O resultado, nota ele, é o desrespeito a regras previstas em lei que determinam em qual vara um caso será investigado e julgado. Isso vai depender, por exemplo, de qual é o suposto crime, o local que ele teria sido cometido e quem são os suspeitos (se possuem foro especial ou não).
Como Moro e Moraes concentraram tantos poderes?
Um fator importante para explicar os “superpoderes” adquiridos pelo então juiz Sergio Moro e agora por Moraes é a grande quantidade de casos com impacto político sob suas responsabilidades, acreditam os juristas entrevistados. Mas como isso aconteceu?
A Operação Lava Jato, iniciada em 2014, sacudiu o país ao atingir, de forma inédita, executivos e políticos poderosos, acusados de desviar recursos públicos da Petrobras e de outras estatais e obras públicas. O preso mais ilustre foi Lula, reeleito presidente após ter suas condenações anuladas pelo Supremo.
Muito celebrada inicialmente, contando com grande apoio popular e respaldo das Cortes Superiores, a operação conseguiu aval do STF para concentrar as investigações que envolviam possíveis desvios da petrolífera na 13ª Vara de Curitiba. Isso deu grandes poderes a Moro, ao colocar em suas mãos o julgamento de supostos crimes cometidos nos mais variados cantos do Brasil.
O argumento era de que todos esses casos teriam relação com um grande esquema de corrupção revelado a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros, como Alberto Youssef, e o ex-deputado federal do PP José Janene.
Posteriormente, quando a operação perdeu credibilidade com a entrada de Moro no governo de Jair Bolsonaro e o vazamento de diálogos que indicavam uma espécie de conluio entre o então juiz e Dalagnoll, os questionamentos a essa grande concentração de casos em Curitiba ganharam força.
As condenações contra Lula, por exemplo, foram anuladas depois que o STF entendeu que os supostos crimes deveriam ser julgados na Justiça Federal de Brasília, já que não havia evidência suficiente de que ele teria sido beneficiado por empreiteiras com recursos desviados da Petrobras (argumento usado para concentrar os casos em Curitiba), como alegava a força-tarefa da operação.
Depois, essas anulações foram reforçadas em outra decisão do Supremo, que considerou Moro parcial nos processos contra Lula. Os casos acabaram prescrevendo e foram encerrados sem novo julgamento em Brasília.
Como ocorreu na Lava Jato, a grande concentração de investigações nas mãos de Moraes também deu grandes poderes ao ministro e tem provocado questionamentos.
O ministro se tornou relator de inquéritos que investigam os mais diversos crimes relacionados a Jair Bolsonaro e seus aliados: de ataques antidemocráticos aos Três Poderes no 8 de janeiro à suposta tentativa do ex-presidente de incorporar joias doadas à Presidência da República ao seu patrimônio pessoal, passando pela falsificação de certificados de vacina contra covid-19.
As investigações concentradas no gabinete de Moraes tiveram origem no chamado inquérito das Fake News, alvo de controvérsia jurídica já no seu início, por ter sido aberto em 2019 por decisão direta do então presidente do STF, Dias Toffoli. Isso foi feito à revelia da PGR – ou seja, sem a participação do Ministério Público, que é a instituição responsável por investigar e denunciar criminalmente no país, segundo a Constituição Federal.
No entanto, julgamento do STF de junho de 2020 considerou o inquérito legal. A avaliação foi que o Supremo pode abrir investigação quando ataques criminosos forem cometidos contra a própria Corte e seus membros, representando ameaças contra os Poderes instituídos, o Estado de Direito e a democracia.
A partir daí, outros inquéritos foram instaurados, como os que investigam atos antidemocráticos ou a atuação de milícias digitais. Em vez de a relatoria dessas investigações serem sorteadas entre os ministros do STF, elas foram mantidas com Moraes, sob a justificativa de apurarem possíveis crimes relacionados ao inquérito inicial.
O professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua questiona se parte dessas novas investigações deveria ser mantida no Supremo, já que em alguns casos não está claro se há pessoas com foro privilegiado (devido ao sigilo de parte dos inquéritos, nem tudo é de conhecimento público).
Porém, ainda que haja fundamento para o foro no STF, ele defende que seria mais adequado sortear a relatoria entre todos os ministros da Corte nos casos sem forte conexão com os inquéritos que já tramitam no gabinete de Moraes.
“Essa concentração de competência (no gabinete de Moraes) é muito questionável. E, aparentemente, o motivo pelo qual ela (a competência) está sendo mantida é a mesma que levou o STF a manter muitos casos com Moro por anos: é um juiz forte, sem medo de tomar decisões duras, e que está tomando uma posição que, no âmbito da esfera pública, é a posição que está sendo mais valorizada”, analisa Pádua.
“No momento, essa posição é a de ser duro com o grupo bolsonarista, com pessoas ligadas à extrema direita. Então, como essa posição é a preferida pela comunidade jurídica, pela comunidade política de modo geral, o Supremo Tribunal Federal mantém, com pouquíssimas dissidências, as competências concentradas em si mesmo, no Supremo, e, dentro dele, na relatoria do ministro Alexandre de Moraes”, acrescenta.
Pádua e Horácio Neiva citaram como exemplo o inquérito que investiga a fraude nos certificados de vacinas. Para ambos, essa investigação não parece ter forte conexão com outras que já tramitam no gabinete do ministro.
Foi a partir desse inquérito que Moraes autorizou uma operação que apreendeu o celular de Jair Bolsonaro e prendeu aliados próximos, como Mauro Cid, que foi ajudante de ordens do ex-presidente.
Conforme mostrou reportagem do jornal Folha de S.Paulo, Moraes justificou manter sob sua relatoria essa investigação com o argumento de que a falsificação dos certificados foi usada para manter a coerência da campanha de desinformação contra vacinas da covid-19. Por isso, argumentou o ministro, o caso teria conexão com o inquérito das milícias digitais, do qual é relator e apura a disseminação de notícias falsas nas redes sociais, inclusive sobre os imunizantes.
“Esse caso da vacina é um exemplo bastante elucidativo disso (a manipulação da competência). Porque dizer que falsificar (certificado de) vacina tem a ver com desmerecer a vacina é até engraçado. É exatamente o oposto”, critica Pádua.
Para a professora de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza, a concentração dos inquéritos no gabinete de Moraes acaba fragilizando o STF.
“Os tribunais existem justamente para serem colegiados. É a colegialidade que dá legitimidade aos tribunais, (que garante a) imparcialidade. Na hora que eu coloco todas as questões que envolvem discussão de crimes na esfera digital, ou relacionados a atentados à democracia ou a fake news com um ministro, eu acho que enfraquece o tribunal como um todo”, avalia.
A professora lembra que um dos argumentos que foram usados para justificar a manutenção dos inquéritos com Moraes seria uma suposta omissão de órgãos de investigação, como Polícia Federal e Procuradoria-Geral da República, para apurar os ataques à Corte e suspeitas contra aliados de Bolsonaro durante seu governo. Para Barboza, esse contexto mudou com a troca de presidente.
“Me parece que agora é preciso caminhar para normalidade, não estamos vivendo um estado de exceção. Você tem o Lula como presidente, você tem as instituições funcionando, então não se pode usar das práticas que a gente condenava antes. Não queremos um ‘lavajativismo’ da esquerda, né?”, questiona.
À BBC News Brasil, o jurista Miguel Reale Júnior defendeu que haja uma “uma análise mais detida” sobre a distribuição de novas investigações que eventualmente sejam abertas no STF.
Ele, porém, lembrou que o plenário do Supremo validou a concentração da relatoria dos inquéritos com Moraes e elogiou a atuação da Corte na “defesa da democracia” diante de “fatos gravíssimos”.
“Eu critiquei a cassação do Deltan (pelo TSE), mas eu não vejo nenhum ‘lavajatismo’ ou alguma parcialidade nas decisões que são feitas em defesa da democracia. O papel do Supremo Tribunal Federal foi fundamental”, defendeu.
“Quem segurou a democracia no país, durante o governo Bolsonaro, e também diante da omissão da Procuradoria (PGR), foi o Supremo”, disse.
Procurado por meio da assessoria do Supremo Tribunal Federal, Moraes não quis se manifestar.
Para professor da USP, há grandes diferenças entre Moraes e Moro
Apesar de concordar que a concentração de investigações e processos em um mesmo juiz é “um ponto de crítica semelhante” a Moro e Moraes, o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê grandes diferenças entre os dois casos e considera equivocado usar a Lava Jato como parâmetro para supostos erros do ministro.
“Eu fico um pouco preocupado com as pessoas usarem a Lava Jato como o gabarito da crítica porque acho que isso força uma série de comparações que são equivocadas e, às vezes, a gente perde a oportunidade de fazer críticas, e eventualmente, apontar coisas erradas (na atuação de Moraes), mas que não têm nada a ver com a Lava Jato”, diz Mafei.
O professor aponta duas diferenças que considera importantes entre os dois casos. A primeira, diz, seria a existência de um “conluio entre juiz e promotor” no caso da operação.
Essa crítica ganhou força quando uma série de reportagens do portal The Intercept Brasil conhecida como Vaza Jato revelou supostos diálogos privados da força-tarefa da operação, inclusive conversas entre Dallagnol e Moro que indicavam uma atuação coordenada entre Ministério Público e o juiz nos processos contra Lula e outros acusados.
“Para mim, (esse conluio) é a grande marca do abuso da Lava Jato. E é completamente inexistente no caso das críticas que podem ser feitas Alexandre de Moraes. Aliás, uma das principais críticas que se faz ao Alexandre de Moraes deriva justamente do fato de que a atuação do Ministério Público Federal foi tudo menos aquilo que ele queria”, ressalta.
A segunda grande diferença, na visão de Mafei, seria a presença de um direcionamento político-ideológico apenas na Lava Jato. Para ele, a operação mirou principalmente os partidos da base dos governos de Lula e Dilma – PT, MDB, PP e PL – com objetivo de enfraquecê-los.
Como exemplo, aponta a divulgação da delação do ex-ministro petista Antonio Palloci com graves acusações contra Lula às vésperas da eleição presidencial de 2018, quando o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), foi derrotado por Bolsonaro. A retirada do sigilo foi determinada por Moro de ofício, ou seja, sem pedido do MPF.
As mensagens hackeadas do celular de Deltan Dallagnol, divulgadas pela Vaza Jato e depois apreendidas pela Polícia Federal na operação “Spoofing”, mostraram que a decisão de Moro foi criticada mesmo por procuradores em um grupo de conversa, revelou reportagem do portal Conjur.
“Parece que o Judiciário está tentando, mais uma vez, ser protagonista do processo político. Vejo nesse levantamento do sigilo tentativa de influenciar na eleição presidencial. Espero estar errado”, disse, por exemplo, o procurador João Carlos de Carvalho Rocha.
Para Mafei, o fato de as investigações no gabinete de Moraes mirarem principalmente Bolsonaro e seus aliados não se trata de uma perseguição ao grupo, mas de uma reação a ataques que partiram desse campo ao Poder Judiciário.
“Tirando as pessoas que vivem no delírio mais amalucado da interpretação política, não acho que exista qualquer um que ache que o Moraes esteja mancomunado com o PT por afinidade ideológica para dar hegemonia à esquerda”, avalia.
“O Moraes é uma pessoa que tem histórico de filiação e de atuação política adversária à esquerda. E os embates que ele teve com o espectro específico de Jair Bolsonaro foram no contexto de uma reação a ataques feitos ao sistema de Justiça, à Justiça Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal”, reforça.
Moro e Dallagnol sempre negaram qualquer ilegalidade nas conversas reveladas pela Vaza Jato. Eles criticam a anulação das condenações e destacam os R$ 6,7 bilhões recuperados pela Petrobras de empresas e ex-executivos alvos da Lava Jato como comprovação dos crimes combatidos pela operação.
“Não tem inocente que foi condenado na Lava Jato. Quem foi condenado é porque pagou suborno ou porque recebeu suborno. Você não vai encontrar nada naquelas mensagens (mostradas na Vaza Jato) de alguém que foi incriminado indevidamente”, afirmou Moro em entrevista ao UOL no ano passado.
“Ora, a Petrobras recuperou R$ 6 bilhões. Ela mesmo divulgou. Não é uma estimativa. Você teve as pessoas que confessaram os crimes. Você teve as grandes empreiteiras que pagaram indenizações e multas. Os fatos estão lá, eles existiram”, disse também na ocasião.
Prisões abusivas?
Moraes também tem sido questionado por possível uso abusivo de prisões preventivas com objetivo de forçar delações premiadas, uma crítica comum à Lava Jato.
Até o momento, porém, não há informação pública de que algum acordo de colaboração foi firmado nos inquéritos que tramitam no gabinete do ministro contra o campo bolsonarista.
Um dos casos que levantou esses questionamentos foi o do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, que ficou cerca de quatro meses preso por determinação de Moraes. Ele é investigado por suposta omissão nos ataques golpistas de 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas. Naquele momento, Torres era o secretário de Segurança do Distrito Federal, órgão responsável por proteger os prédios públicos em Brasília.
A decisão inicial pela prisão de Torres foi referendada pela maioria do STF (9 votos a 2), no julgamento que manteve também o afastamento do governador Ibaneis Rocha. Depois, Moraes prorrogou a prisão preventiva sob argumento de que era “adequada para garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal”, ou seja, para evitar a repetição dos supostos crimes e não atrapalhar a investigação.
Torres foi solto em maio, sob condições como usar tornozeleira eletrônica, não portar arma de fogo e ficar afastado das redes sociais.
Para aliados de Bolsonaro, a prisão teria objetivo de forçar uma delação premiada que atingisse o ex-presidente. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) chegou a dizer que Torres teria “procurado se suicidar”.
“Não há qualquer motivo para a prisão. Anderson Torres já tem um quadro depressivo. (…) A prisão preventiva se enquadra apenas quando existe risco de fuga, que não foi o caso. Anderson Torres, inclusive, retornou ao país (dos Estados Unidos). Ele não está atrapalhando as investigações nem pondo sob risco a ordem econômica ou a ordem pública”, disse o deputado ao portal Metrópoles.
Outro aliado próximo de Bolsonaro que segue preso é seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid. Alvo de diferentes inquéritos no gabinete de Moraes, ele foi detido preventivamente no início de maio, no caso dos cartões falsos de vacinação, com a justificativa de que poderia atrapalhar as investigações caso estivesse solto.
Autor do livro Prisões Preventivas da Lava Jato – Uma análise empírica e crítica de seus fundamentos, o advogado Álvaro Chaves estudou as prisões determinadas por Moro entre 2014 e 2017 em sua pesquisa de mestrado, na Universidade de Brasília (UnB).
Ressaltando não ter o mesmo conhecimento aprofundado das decisões de Moraes, ele apontou à BBC News Brasil duas diferenças entre as prisões determinadas pelo ministro e as da Lava Jato: a duração e a liberação após a delação premiada.
“Analisando a questão temporal, me parece que não tem nenhum paralelo esse tipo de comparação (entre prisões de Moro e Moraes). Houve prisões na Lava Jato que duraram três anos, dois anos e meio. E o Torres ficou preso quatro meses. Se você pegar uma análise mínima da jurisprudência, eu te desafio a achar (alguma decisão que aponte) excesso de prazo com quatro meses”, ressalta.
Na sua pesquisa sobre Lava Jato, Chaves analisou também as decisões em que Moro revogou prisões preventivas. Na metade dos casos estudados, a pessoa foi solta após fechar acordo de delação.
“Fiz uma análise histórica de três anos que, na minha visão, mostra que esse modo de agir é bastante claro. As prisões da Lava Jato tinham, sim, a finalidade de aumentar os acordos de colaboração premiada”, avalia o advogado.
“No caso do Torres, ficou preso quatro meses, algo ordinário no Brasil, e o Moraes não soltou ele porque estava negociando delação premiada. Na Lava Jato, teve prisão preventiva que foi revogada por Moro antes da pessoa ser presa, porque a pessoa começou a negociar a delação”, disse ainda.
A controversa cassação de Deltan
Além de concentrar a relatoria de inquéritos importantes, Moraes acumula mais poderes no momento por ser o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O comando da Corte é exercido rotativamente por ministros do STF e o mandato de Moraes vai até junho de 2024.
Ele decidirá, por exemplo, quando será julgada uma ação que tem potencial de deixar Jair Bolsonaro inelegível por oito anos, por suspeita de ter cometido falsos ataques ao sistema eleitoral brasileiro. O caso foi liberado no final de maio pelo corregedor da Justiça Eleitoral, o ministro Benedito Gonçalves, que hoje é visto como um aliado de Moraes no TSE. No total, o ex-presidente enfrenta 16 ações que pedem sua inelegibilidade.
Especialistas eleitorais, como a advogada Vânia Aieta, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), veem risco real do ex-presidente ser condenado, tanto pelos ataques ao sistema eleitoral, como por uso da máquina pública para favorecê-lo na campanha de 2022.
Bolsonaro, por sua vez, nega qualquer irregularidade e diz que as críticas que fez às urnas eletrônicas eram uma preocupação legítima com a segurança da votação.
Enquanto o julgamento mais aguardado do ano não chega, o TSE enfrentou outra ação importante em maio, quando decidiu por unanimidade cassar o mandato de deputado de Dallagnol, com base na Lei da Ficha Limpa. Essa lei estabelece que membros do Ministério Público não podem disputar a eleição caso tenham Processos Administrativos Disciplinares (PADs) pendentes ao deixar o cargo para se candidatar.
Dallagnol não tinha processos abertos quando pediu demissão do MPF, mas enfrentava outros 15 procedimentos preliminares relacionados a supostos abusos quando atuava na Lava Jato que, em tese, poderiam resultar na abertura de novos PADs.
Como o então procurador se demitiu meses antes do prazo para disputar eleição, o TSE entendeu que ele antecipou sua saída para evitar a abertura de um PAD contra si, realizando assim uma fraude ao objetivo da lei da Ficha Limpa de evitar que integrantes do Ministério Público que enfrentem esses processos possam disputar eleição.
A decisão dividiu juristas. Na visão do ex-juiz eleitoral Márlon Reis, considerado o idealizador da Lei da Ficha Limpa, a decisão do TSE foi “irretocável” e seguiu o “espírito da lei” de buscar evitar que autoridades driblem as hipóteses de inelegibilidade.
Já Reale Júnior considerou a decisão arbitrária, ao cassar o mandato de Dallagnol sem que houvesse de fato um PAD aberto contra ele. Na sua visão, a decisão alimenta o discurso do ex-procurador de perseguição aos antigos integrantes da Lava Jato.
“Eu creio que dá fôlego para essa argumentação, e dá fôlego para alimentar esse antagonismo, esse Brasil como um rio fora do leito, espalhando e disseminando controvérsias e ódios. Então não facilita de forma nenhuma a união”, criticou.
“Eu acho que a decisão do TSE foi, a meu ver, manifestamente errada e não se pode fazer uma ampliação da lei para punir gravemente com perda de mandato”, disse ainda.