Lira tem planos de ampliar poder no governo

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Foto: ilustração Carlinhos Müller

Em seu quarto mandato consecutivo de deputado federal, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), costuma dizer que passou anos no “chão de fábrica” antes de ascender na hierarquia da Casa e finalmente ser eleito — e reeleito — para comandá-la. A experiência na planície lhe rendeu trânsito entre parlamentares do baixo clero, conhecimento sobre o que toca fundo na alma dos colegas e expertise para negociar com o Planalto, seja em benefício próprio, seja em nome do Centrão, bloco que está sempre disposto a apoiar o governo de turno em troca de benesses oficiais. As negociações de Lira com Lula não têm sido fáceis para nenhum dos dois. O presidente da República ainda não conseguiu formar uma base de apoio e colhe derrotas no Congresso, como na desfiguração de sua proposta de reestruturação da máquina pública. Já Lira não conseguiu retomar o controle de fatias bilionárias do Orçamento, que estavam sob sua alçada na gestão de Jair Bolsonaro, nem convencer o Executivo a liberar verbas e distribuir cargos na forma desejada pelos deputados. Como ocorre desde o início do mandato de Lula, os dois políticos estão insatisfeitos na mesa de negociação.

A diferença agora é que a paciência de Lira está se esgotando. O deputado está disposto a partir para a guerra e conta com um grupo de aliados devidamente preparado para fustigar o governo em diferentes frentes. O plano de ataque será levado adiante se Lira, em particular, e o Centrão, no geral, não conquistarem o que desejam: mais poder. Uma das prioridades é obrigar Lula a realizar uma reforma ministerial que aumente a participação de nomes indicados pela Câmara no primeiro escalão, reduza a influência de senadores na Esplanada — especialmente Renan Calheiros, adversário político de Lira em Alagoas, e Davi Alcolumbre — e diminua a quantidade de pastas estratégicas nas mãos do PT. Em duas conversas com Lula, uma pessoalmente há cerca de três semanas, e a outra por telefone na última quarta-feira, Lira reclamou da atuação dos ministros da Casa Civil, Rui Costa, e de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, culpan­do-os por todas as dificuldades enfrentadas pelo governo na Câmara. Além disso, deixou claro que os deputados querem comandar um ministério de ponta, como o da Saúde. Se realizadas essas mudanças, de acordo com Lira, dariam a Lula a sustentação parlamentar que ele hoje não tem.

O presidente ouviu com atenção o rosário de queixas do deputado e pediu ajuda para votar a medida provisória que estrutura a máquina pública. A MP acabou aprovada na Câmara, que, sob a relatoria de Isnaldo Bulhões (MDB-AL), aliado de Lira, retirou atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas (leia a matéria na pág. 34), numa decisão considerada pela tropa de Lira não uma vitória do governo, mas o último sinal de boa vontade com Lula. Nos bastidores, o espírito é de sublevação. Se o presidente não atender as demandas de Lira e companhia, será submetido a toda sorte de derrotas e contratempos. Além das mudanças no ministério, consta da lista de reivindicações a devolução ao deputado do poder de decidir o destino de quase 10 bilhões de reais que antes faziam parte do chamado orçamento secreto e agora estão nas mãos dos ministérios. Segundo alguns de seus aliados, Lira acha que está sendo sabotado pelo governo na questão orçamentária. “Por que brigar comigo se eu não estou querendo brigar?”, disse o deputado numa conversa recente. Em seguida, conforme relatos, ele lembrou que, como presidente da Câmara, tem a prerrogativa de pautar ou não projetos. “Posso usar o poder de pautar para machucar o governo”, acrescentou na ocasião. O plano de um eventual ataque ao Planalto já está delineado. Reeleito para o comando da Câmara com 464 votos de 513 possíveis, Lira é o parlamentar mais poderoso do país e informalmente ainda chefia uma “confraria” que reúne líderes de partidos da Câmara. Esse grupo se reúne fora das agendas parlamentares, viaja junto nos fins de semana e feriados e nos momentos de confraternização tenta definir os rumos do país. No último fim de semana, por exemplo, Lira esteve em Jericoacoara, a 300 quilômetros de Fortaleza (CE), com alguns aliados, como o ministro Juscelino Filho (Comunicações) e o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento, que só não foi nomeado ministro do governo Lula porque Rui Costa, seu adversário político na Bahia, convenceu o presidente da República de que não era boa ideia. A viagem ocorreu após a votação do novo arcabouço fiscal pela Câmara, que, segundo Lira, foi aprovado graças a ele e ao Centrão — e apesar da desarticulação governista. Na praia, porém, o clima estava longe de ser festivo. Lira demonstrava irritação diante do que considerou ser uma artilharia contra ele orquestrada pela esquerda nas redes sociais com o aval do Planalto e do PT.

Ele virou alvo de uma sequência infindável de memes, xingamentos e críticas após viabilizar o avanço de uma agenda contrária ao segmento ambientalista. “Eu não vou manter essa relação de apoiar o governo para ficar apanhando deles”, esbravejou. Ao pisar de volta em Brasília, o tal poder de pautar, ameaçador e capaz de machucar o governo, foi exercido. Lira reuniu o seu “staff” em sua casa — o que faz rotineiramente antes de tomar decisões — e deu início ao contra-ataque. A Câmara aprovou a proposta que altera as regras de demarcação de terras indígenas, derrotando o governo. Na sequência, ameaçou rejeitar a medida provisória que reorganiza a estrutura federal, o que levou Lula a conversar com ele por telefone. Todos esses movimentos legislativos do deputado são negociados internamente e contam com o respaldo da maioria da Casa, cerca de 300 deputados, a maioria de perfil de centro-direita. Vetado no ministério, Elmar Nascimento, cotado para suceder a Lira na presidência da Câmara, tem pronto um plano de convocação do ministro Rui Costa, considerado um adversário pela confraria de Lira. A depender dos rumos das negociações com o Planalto, a convocação pode ser aprovada de imediato. Outro parceiro preferencial é o deputado André Fufuca, líder do PP, partido que chega a entregar entre 85% e 90% dos votos ao governo mesmo sem ter nenhum ministério, algo que Lira quer ver reparado o mais rapidamente possível.

O jovem Fufuca, aliás, se apresentou para presidir a CPI Mista dos atos de 8 de janeiro, e seu nome chegou a ser dado como favorito para a função. O presidente da Câmara, porém, barrou a ida do aliado, temendo que qualquer consequência polêmica das investigações pudesse ser debitada na conta dele, Lira. Pura estratégia diversionista. Numa dobradinha com o União Brasil, foi alçado ao posto de presidente da CPI o deputado Arthur Maia, aliado de primeira hora e conterrâneo de Elmar Nascimento. Com bem menos alarde, Fufuca está por trás da criação da CPI da Americanas. É dele o pedido de uma investigação sobre o rombo bilionário da varejista, que promete emparedar outros grupos, como a Ambev, e grandes empresas de auditoria, como a PwC Brasil. Outros aliados do presidente da Câmara estão em posições determinantes em comissões de inquérito. Coube ao líder do Republicanos, Hugo Motta (PB), a indicação do explosivo deputado tenente-coronel Zucco (RS) para comandar as investigações sobre o MST. O nome de Zucco, um deputado de primeiro mandato apoiador de Bolsonaro, é sabidamente um problema para o governo, que vê na comissão o objetivo de vasculhar as origens dos financiamentos às invasões de terra Brasil afora e um altíssimo potencial de esgarçar sua relação com o movimento. Já o deputado Felipe Carreras (PSB-­PE) assumiu a relatoria da CPI das Apostas Esportivas, que apura um esquema de manipulação em jogos de futebol. Antes mesmo de as investigações começarem, ele teve reuniões com as grandes emissoras de televisão, com empresários ligados ao ramo das apostas e com membros da Polícia Federal e do Ministério Público. A missão de Carreras, no entanto, vai além. Ele foi alçado por Lira a líder do recém-criado “blocão” que reúne nove partidos, do PP ao PSDB, e 174 deputados. O agrupamento gerou uma especial ciumeira dentro do PT, que viu na iniciativa uma forma de isolar a legenda na Câmara. Em outra missão, essa também mais política e distante dos holofotes, o líder do PSD na Câmara, Antonio Brito (BA), tenta pacificar as relações com o Senado, presidido por Rodrigo Pacheco, com quem Lira tem tido uma série de desavenças. Já do lado do presidente da República, o clima é igualmente de desconfiança com relação às movimentações e à sede de poder do deputado. A três anos das próximas eleições, o Planalto vê a união de forças multipartidárias ao redor de Lira como a semente de uma aliança futura para derrotar Lula ou um candidato do PT em 2026.

Não é uma suspeita infundada. Antes da votação do arcabouço fiscal pela Câmara, Lira participou de uma reunião com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e representantes dos principais setores da economia brasileira, como Rubens Ometto, dono da Cosan, e Benjamin Steinbruch, da CSN. Na ocasião, o deputado fez questão de deixar claro que, independentemente da vontade e da capacidade de articulação do governo Lula, projetos de modernização da economia brasileira serão aprovados. Além disso, iniciativas estatizantes ou intervencionistas serão barradas. Lira se colocou, assim, como interlocutor preferencial do dinheiro graúdo em Brasília. A parte privada da plateia, obviamente, gostou do que ouviu. No entorno de Lira, já há quem esteja encomendando pesquisas sobre o potencial eleitoral do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e fazendo planos para 2026. Até mesmo a formação de uma chapa vem sendo aventada. Por ora, ninguém ousa dizer quem deveria se unir a Tarcísio, mas o nome de Lira é incensado como uma possibilidade de vice na chapa. “Precisa ser um nome do Nordeste”, vaticina um dos maiores aliados do presidente da Câmara.

Protagonista da vez na eterna negociação entre o presidente de turno e o Congresso, Lira é um entusiasta da mudança no sistema de governo brasileiro. Ele defende a adoção do semipresidencialismo, modelo no qual há uma divisão de poderes com o Executivo e é criada a figura de um primeiro-ministro e um conselho de ministros. Para o deputado, seria uma forma de melhorar a governabilidade e dar fim à insegurança política que marca o período posterior à redemocratização. A votação do projeto de semipresidencialismo não está no radar. Nem precisa. No governo de Jair Bolsonaro, Lira foi uma espécie de primeiro-ministro na prática. Na gestão de Lula, tenta recuperar tal status. Tudo indica que não será uma missão pacífica. Na quinta-feira 1º, o deputado sedimentou sua convicção em relação ao Planalto. Menos de 24 horas depois do enfrentamento no Congresso, a Polícia Federal realizou buscas em endereços de suspeitos de envolvimento em um suposto esquema de superfaturamento de contratos no âmbito do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que era um feudo do Centrão no governo Bolsonaro. Entre os endereços visitados estavam o de um assessor e o de um aliado, onde foi achado dinheiro vivo. Retaliação do governo? Lira não tem dúvida. No mesmo dia, ele mobilizou seus “cavaleiros”. A guerra está declarada.

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