STF julga hoje porte de drogas para uso pessoal
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Em agosto de 2009, a Suprema Corte Argentina descriminalizou o porte de pequenas quantidades de drogas para consumo pessoal. Poucos meses depois, essa decisão levou o defensor público Leandro Castro Gomes a entrar com um recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) para que um entendimento parecido ao argentino fosse adotado no Brasil.
“Essa atuação foi motivada na época, eu me lembro bem, por uma decisão da Corte Suprema da Argentina que há pouco tempo tinha adotado a decisão que esperamos que o Supremo adote”, diz Gomes em entrevista ao g1.
A análise do recurso começou no STF em 2015, mas foi interrompida por um pedido de vistas. Agora, a ação deve voltar à pauta da Corte nesta quinta-feira (1).
“Esse caso é praticamente minha história dentro da Defensoria de São Paulo”, afirma o defensor. “O caso concreto foi em agosto de 2019, eu tomei posse na defensoria em setembro de 2019 e o recurso foi em meados de 2010. Sempre ficamos ansiosos com a retomada do julgamento, já tem muito tempo que está se arrastando. Acho que estamos em um momento que a pauta do Supremo permite fazer essa análise”.
O caso concreto a que Gomes se refere é o de um mecânico que assumiu ser dono de três gramas de maconha encontrados por agentes penitenciários na cadeia em que ele estava preso, em Diadema. Na época, Francisco Benedito de Souza foi condenado à prestação de serviços à comunidade por dois meses.
Na Defensoria Pública de São Paulo, Gomes, então lotado em Diadema, assumiu a defesa dele e apresentou o argumento de que há violação da Constituição quando o Estado criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal, ofendendo os princípios da intimidade, da privacidade, da autodeterminação e, ainda, o chamado princípio da lesividade ou ofensividade — segundo o qual não há crime se não há lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico alheio.
Nesse sentido, Gomes alegou que o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343, de 2006), que criminaliza a aquisição e a posse de drogas para consumo pessoal.
“Na época, essa era uma alegação muito de vanguarda, era algo muito diferente do que se costumava alegar. Lembro que na sustentação oral, quando fiz a argumentação, houve um estranhamento dos presentes”, conta ele. “Foi interessante o processo ter chegado ao nível mais alto [o Supremo] para mostrar a seriedade no argumento”.
Em 2009, a segunda instância manteve a sentença contra Souza, e a Defensoria levou o caso ao STF.
Naquele ano, a mais alta corte da Argentina reviu uma lei que, até então, também punia criminalmente pessoas flagradas com pequenas quantidades de drogas para consumo pessoal.
“O artigo 19 da Constituição Nacional constitui uma fronteira que protege a liberdade pessoal frente a qualquer intervenção alheia, inclusive a estatal. Não se trata apenas de respeito às ações realizadas em âmbito privado, mas também do reconhecimento de um âmbito em que cada indivíduo adulto é soberano para tomar decisões livres sobre o estilo de vida que deseja”, afirmou em seu voto o então presidente da corte argentina, ministro Ricardo Lorenzetti.
No caso específico do mecânico brasileiro, o defensor Leandro Gomes entendeu que o consumo pessoal de pequenas quantidades seria uma “auto lesão”.
“Não há uma expansibilidade do risco na conduta de portar drogas para o seu próprio consumo, apenas risco à saúde daquela própria pessoa, mas não uma conduta criminal que exigiria uma punição, uma estigmatização”, explica ele.
Três ministros já votaram e tiveram entendimentos parecidos, se posicionando pela descriminalização do porte para consumo pessoal.
Relator do caso, o ministro Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, defendendo a aplicação de sanções administrativas para casos flagrados — sem punição penal.
Os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin seguiram o relator pela inconstitucionalidade do artigo 28, mas limitaram o voto ao porte de maconha.
Após a morte do magistrado em um acidente aéreo, em 2017, o ministro Alexandre de Moraes herdou o processo, liberando-o novamente para julgamento em novembro de 2018. Moraes ainda não proferiu seu voto.
O julgamento tem repercussão geral. Assim, o que for decidido pela maioria dos ministros terá efeito em todas as ações que tramitam na Justiça brasileira.
Caso a maioria dos ministros acompanhe o relator, Gomes, atualmente lotado em Taubaté, afirma que uma eventual decisão do Supremo que descriminalize o porte não equivale a um “liberou geral”, ou seja, ao uso irrestrito de drogas.
“Não é disso que se trata e não é esse o pedido da defensoria. Existe uma gradação do regramento da política pública: em um extremo, tem a política de proibição, que trata a questão das drogas do ponto de vista criminal, que estigmatiza o usuário e traz problemas de incompatibilidade em relação ao que a própria lei prevê para ressocialização, atendimento à saúde. No outro oposto do espectro teríamos essa ideia de liberou geral”, explica Gomes.
O defensor aponta que todos os ministros que já votaram destacaram a necessidade de haver uma análise do tema também pelo Executivo e pelo Legislativo para que haja também políticas de prevenção de risco e redução de danos. “Para mudar o foco: tirar o sinal de criminal e mudar para o sinal da saúde pública”.
Caso o STF decida pela descriminalização do porte para consumo pessoal, Gomes prevê três possíveis impactos para o sistema penitenciário brasileiro e o encarceramento em massa — o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo:
Efeito simbólico da decisão, que demonstrará que a política criminal de drogas merece uma crítica e uma reflexão.
Caso os ministro definam parâmetros objetivos para diferenciar o usuário do traficante (por exemplo, determinada quantidade de droga), é possível que haja uma repercussão mais imediata em outras decisões do país. Gomes cita um estudo de 2015 da pesquisadora Juliana de Oliveira Carlos que mostrou que caso o Brasil adotasse a quantidade limite para caracterização de posse para uso pessoal adotada em outros países, 54% das pessoas presas por porte de maconha e 19% dos presos por posse de cocaína teriam sido considerados usuários e não teriam sido encarcerados.
A eventual declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 também afetaria o regramento da individualização da pena para casos reincidentes, devolvendo a condição de réu primário a várias pessoas, o que pode ter um efeito de diminuição do encarceramento. Isso porque quando uma pessoa é presa em flagrante e é considerada reincidente, ela tem a prisão automaticamente convertida em preventiva. Reincidentes também tem mais dificuldade de ter substituição da pena, por exemplo.