Há preconceito contra evangélicos no Brasil?
Foto: DIVULGAÇÃO/IURD
Afinal, há “crentefobia” no Brasil? Vira e mexe apontado como disseminador de intolerância, o segmento evangélico se vê agora na outra ponta dessa lança: seriam eles também alvo de rejeição apenas por seguirem essa fé?
Larissa e Lucas acham que sim.
Com a estudante Larissa Ramos, 22, partiu do namorado. Estavam juntos há dois anos, e sua fé nunca foi um problema.
Até que veio a eleição de 2018, e ela, que sempre se identificou com a “esquerda Lula Lá”, passou a ser chamada de “minion” (apelido pejorativo para apoiadores de Jair Bolsonaro). Tudo por ir à igreja evangélica que sempre frequentou com a mãe.
Larissa acredita que o namorado, influenciado pelos amigos, “caiu na pilha”. Terminaram dias depois do segundo turno. “Claro que não foi só pela questão política, mas ajudou. Ele tava com vergonha de mim. Chegou a escrever ‘crentezinha’ [no WhatsApp] numa briga.”
Com o estoquista Lucas Lima, 30, partiu do pai, inconformado com seu credo e também com sua decisão de só fazer sexo após casar (o que aconteceu três anos atrás).
“Ele dizia até que era viadagem. Queria me levar numa casa de prostituição, me oferecia bebida. Falava que assim que eu experimentasse a coisa, eu desistiria de ser crente.”
Também tinha um chefe, quando trabalhou numa prefeitura do interior paulista, que pegava no pé. “Dizia que eu ia morrer virgem se continuasse com ‘essas besteiras’, criticava o fato de eu dar o dízimo.”
Se isso não é ser crentefóbico, dizem Larissa e Lucas, o que mais seria?
Para fiéis que se veem como alvo, são três reclamações maiores: 1) tratar um grupo religioso tão plural como monólito; 2) responsabilizar todos eles pela intolerância de alguns; 3) achincalhar suas convicções, como a opção de Lucas em não transar até o matrimônio.
Um preconceito que seria também contraprodutivo num Brasil onde já há mais jovens evangélicos do que católicos: 19% contra 13%, respectivamente, na faixa dos 16 aos 24 anos, segundo Datafolha de dezembro.
Entre quem tem 60 anos ou mais, o jogo se inverte, com 25% de católicos, e 16% de evangélicos. Na média, seguidores do Vaticano são 50%, e o outro bloco cristão, 31%.
Há, contudo, quem pondere: até existe atos isolados contra evangélicos, mas seria forçar a barra falar em algo maior. E isso daria margem para falsa equivalência num país onde terreiros de crenças afrobrasileiras são vandalizados por facções como o Bonde de Jesus.
Uma entrevista de Petra Costa sobre seu “Democracia em Vertigem” reabriu a discussão: o triunfo eleitoral de Jair Bolsonaro teria, segundo ela, contribuição de “enormes ondas de evangélicos que são contra os direitos dos gays, feminismo e pessoas de cor”.
O doutor em economia Pedro Fernando Nery disse, em artigo para O Estado de S. Paulo, que, na fala da documentarista, “os evangélicos parecem ser uma massa de zumbis preconceituosos e manipuláveis”.
Também lembrou de quando a ministra Damares Alves contou que, criança, quase ingeriu veneno para se matar após anos sendo estuprada por um pastor. Subiu num pé de goiaba, viu Jesus e mudou de ideia.
“O relato novamente é ridicularizado, agora em uma marchinha de carnaval, festejada por feministas como Zélia Duncan. Mexeu com uma, mexeu com todas. Mexeu com Damares, vamos mexer também.”
Essa peteca foi mantida no ar por Thiago Amparo, professor de políticas de diversidade na FGV-SP, em sua coluna na Folha. Ele concorda que, quando experiências religiosas como a de Damares são tratados com escárnio, não tem outro nome possível: é intolerância religiosa.
Mas não dá para confundir: “Uma coisa é condenar (corretamente) atos de intolerância”, outra, “argumentar que há um sistema de opressão estrutural contra evangélicos”.
Para Amparo, “o preconceito que possa haver contra evangélicos de carne e osso, não os líderes televisionados, à direita e à esquerda, é mais resquício de uma sociedade classista e racista que se entende na missão de civilizar o outro do que em si pela religião”.
O debate tem mais tons que o verde-amarelo. Autor cristão, o americano Dwight Clough se diz de saco cheio com artigos que equiparam um evangélico a um fundamentalista.
“Você teme que eu instale uma teocracia como a dos aiatolás no Irã? Não tenho o desejo nem a habilidade”, afirma. “Minha Bíblia fala que só Jesus poderia fazer isso, e se Ele quisesse, certamente não precisaria da minha ajuda.”
O cientista social Léo Rossato, do podcast TeoLabCast (sobre “fé, ciência e tudo o que couber no meio”), acha estapafúrdia a ideia de que setores progressistas, no qual se inclui, tenham preconceito com evangélicos, outro nicho do qual faz parte.
Para ele, a dificuldade que a esquerda tem nesse galho religioso tem muito mais a ver com igrejas que concentram poderes na mão de seus líderes. “Fica muito difícil entrar nessas estruturas se o pastor centralizador, que também tem um papel simbólico muito forte na congregação, se alinha com o Bolsonaro.”
Ele escreveu um texto em que rememora a presença de evangélicos em partidos progressistas. “O problema foi a divisão provocada em 2018 nas igrejas, fomentada por Bolsonaro e inúmeros pastores que o apoiaram. Daí o diálogo foi fechado. A esquerda tem várias culpas. Não essa.”
Nilza Valéria Zacarias ocupa o mesmo lugar de fala: “Crente” e “de esquerda”. E discorda de Rossato.
Coordenadora da progressista Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, ela diz que “a maior parte da elite intelectual do Brasil tem preconceito”.
Experiência pessoal. “Tenho na memória as expressões surpresas de diversas pessoas, em espaços acadêmicos, ao ouvirem que sou crente. Acham que quem segue essa fé é por carência, necessidade, falta de autonomia.”
Ativista do movimento negro evangélico, Jackson Augusto acha que existe, sim, “uma indisposição” da esquerda com evangélicos, mas que não escalou para uma centrefobia estrutural. Seria um preconceito “que não chega a nos matar”.
O que sobraria é uma ignorância que facilitaria “criar uma miragem, algo que não é real sobre o evangélico”. Ele lembra, por exemplo, que mulheres e negros são maioria nesse campo, fatias do eleitorado que a esquerda sempre cortejou.
O ex-presidente Lula diz agora que tem “jeitão de pastor” e orienta o PT a correr atrás do prejuízo para tentar reaver um apoio evangélico que já teve no passado. Só precisa ficar atento: aproximações superficiais perigam parecer “um lance completamente eleitoral”, diz Augusto.
Redação com Folha