Moradores de rua enganam fome com água

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Foto: Reprodução/Folha

Usando uma máscara e com uma Bíblia na mão, Marinaldo Fiuza de Santana, 38, observa a fila dos famintos se formar no Largo São Francisco, no centro de São Paulo.

“Você vai ver onde essa fila vai daqui a pouco, rapaz”, diz o homem, sentado na esquina onde costuma passar o dia todo, à reportagem. Algumas dezenas se multiplicam para centenas, no tipo de aglomeração que os especialistas consideram arriscada para a contaminação por coronavírus.

Embora alguns usem máscaras doadas, a preocupação ali é mais imediata: matar a fome. Essa pode ser a única refeição do dia para aqueles, que, em anos vivendo na rua, dizem nunca ter visto tamanha escassez de comida.

A Folha inicia neste sábado uma série sobre a fome nos tempos de coronavírus. O primeiro capítulo mostra a situação dos moradores de rua, impossibilitados de fazer quarentena. No entanto, com a cidade parada e sem reservas, eles foram os primeiros atingidos por ela.

Dependendo de doações, coleta de materiais recicláveis ou venda de balas, viram a renda e os alimentos desaparecerem subitamente. Agora, gritam por socorro nas ruas da cidade e levantam caixas de papelão com frases como “estou comendo lixo”.

“Eu mesmo passei muita fome aqui, só bebendo água”, diz Marinaldo, um baiano que veio parar na metrópole porque que “se for para sofrer, que seja em São Paulo”. “Teve dia com umas 200 pessoas nesta situação.”

A fila em frente à Faculdade de Direito da USP já dá voltas. “Pessoal, não vão embora, logo vão chegar mais 150 quentinhas”, avisa o frei Diego Melo, do Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade).

Os franciscanos administram um serviço conveniado com a prefeitura próximo dali, o Chá do Padre, que atende 700 pessoas por dia. No entanto, segundo o frei, a demanda triplicou.

“Com a questão do coronavírus, ONGs, coletivos, instituições, pastorais que entregavam quentinha pela região central passaram a não vir mais por medo do contato. E aí essa população ficou totalmente desassistida e vulnerável”, diz.

O estande no largo foi uma tentativa de garantir que os doadores habituais e outros entregassem apenas o material, para que fosse preparado na igreja e servido ali mesmo na rua. Muitas vezes não é suficiente, e alguns chegam de manhã para conseguir a comida depois das 13h, debaixo de sol forte.

No domingo (29), conta o frei, não chegou nenhuma doação. “Nós fomos tentando enganar com pão, lanche, mas não chegou refeição”, diz.

A falta de comida gera uma peregrinação até os poucos lugares que oferecem um prato, sempre lotados. Cadeirante, Ivandete Silva Marques, 52, usa ciclovias para se deslocar da região da Luz, onde dorme nas ruas, até a Sé para conseguir comida. É a única refeição que terá no dia.

“Eu como esse prato aqui. Guardo a fruta e o suco para comer de noite”, diz. Ela tem uma série de problemas de saúde, como osteoporose e artrite, que são agravados pela fome.

“[Sem alimentação adequada], essa população terá deficiência nutricional e ficará mais suscetível não só ao coronavírus como a outras doenças”, diz Rosana Perim, gerente de nutrição do hospital HCor. Segundo ela, as condições de higiene precária e doenças pré-existentes podem agravar mais ainda a situação dos moradores de rua.

De acordo censo municipal de São Paulo, a população de rua na cidade chegou a 24.344 pessoas em 2019 —um salto de 53% em quatro anos. Em 2015, as pessoas nessa situação somavam 15,9 mil. Do total registrado, 2.210 estão no grupo de maior risco, acima dos 60 anos.

“O censo oficial fala de 24 mil, mas nós sabemos que são mais de 30 mil. Pelo próprio censo da prefeitura, mais de 50% não estão em acolhimento”, diz o padre Julio Lancelloti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, da Igreja Católica.

Padre Julio afirma que, devido à doença, há grande tensão entre essa população. “Eles estão com medo. O medo, a insegurança, aumentam a fome”, diz.

O medo não é só do vírus e da fome, mas dos outros. Embora os primeiros casos de coronavírus tenham sido detectados na população de alta renda, os moradores de rua passaram a ser vistos também como ameaça e possíveis vetores da doença.

Além disso, circulam boatos de que, com fome, os moradores de rua estariam fazendo arrastões pela cidade. Apesar de não haver qualquer evidência de ambos os pontos, é o suficiente para que eles sejam alvos de agressão.

Padre Julio afirma ainda que os serviços públicos que oferecem comida diminuíram as porções, ao mesmo tempo que passaram a atender mais pessoas. Para exemplificar, o padre mandou à Folha fotos de uma refeição do Bom Prato, do governo estadual, e uma da Pastoral de Rua, na qual a segunda é bem mais generosa.

Como muitas vezes a refeição que recebem é a única que vão conseguir no dia, as pessoas em situação de rua, algumas vezes, não chegam a ficar saciadas em nenhum período do dia.

O governo João Doria afirmou à Folha que lançou o serviço Bom Prato Express, com a distribuição ampliada das refeições em embalagens descartáveis com talheres. “Todas as 59 unidades do Estado oferecem as três refeições —café da manhã, almoço e jantar—, com o atendimento todos os dias da semana, inclusive feriados, garantindo a alimentação principalmente dos moradores de rua. A medida aumenta em 1,2 milhão o número de refeições servidas por mês, e será mantida até 1º de junho”, afirma o governo.

Já a gestão municipal de Bruno Covas (PSDB) anunciou a criação de seis serviços de acolhimento aos moradores de rua, incluindo um voltado aos diagnosticados com a Covid-19. Além disso, afirma que lançou um edital para credenciar restaurantes para distribuir comida aos moradores de rua, em um projeto chamado Rede Cozinha Cidadã.

Enquanto os locais não são montados, os pontos voltados a oferecer alimento a moradores de rua passam a receber cada vez mais pessoas que perderam a renda durante a quarentena; gente que não está na rua, mas com um pé nela.

O chapeiro Fabiano Augusto, 39, por exemplo, ficou desempregado em fevereiro. “Normalmente, ninguém fica desempregado nessa área. Mas agora está tudo fechado”, diz ele, que também esperava por almoço gratuito na quarta. “Eu acordo muito triste por ser alguém que serve alimento e hoje não ter.”

O Sefras aceita doações de mantimentos no largo São Francisco. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 11 97739-0146 ou no site da entidade.

Folha