Panelaços criam guerra entre vizinhos
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Eles se tornaram parte da paisagem sonora durante o isolamento em muitos bairros e ganharam até a função de alarme —se há um tilintar de panelas à noite, muito provavelmente são 20h30, hora de mais um pronunciamento de Jair Bolsonaro na TV ou do início do Jornal Nacional.
Os panelaços contra o presidente, que passaram a gerar respostas de apoiadores dele na forma de gritos, caixas de som tocando o hino nacional ou mesmo outros panelaços, estão acirrando emoções em prédios Brasil afora e agravando conflitos políticos entre vizinhos.
Distantes das janelas e sacadas desde os atos em favor do impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, os utensílios de cozinha voltaram a ressoar em manifestações contra a postura de Bolsonaro na pandemia do coronavírus e criaram uma dor de cabeça a mais para síndicos.
Relatos colhidos pela Folha em diferentes cidades incluem enxurrada de reclamações no celular de administradores de condomínios, acusações de censura sobre gestores que pediram moderação e até cusparada de um vizinho no rosto de outra que reclamou da algazarra.
Os casos mais graves até agora ocorreram no bairro de Perdizes (zona oeste de São Paulo), onde dois moradores de edifícios diferentes registraram boletins de ocorrência por causa de disparos de armas de pressão na direção de suas janelas. A Polícia Civil investiga.
Os projéteis têm potencial para ferir e até cegar uma pessoa. Um morador de um dos imóveis alvejados disse à Folha que a família, que é contrária ao governo, agora se sente caçada por seguidores do presidente.
Os panelaços contra Bolsonaro atingiram os decibéis mais altos entre meados de março e o início de abril, mas voltam a ecoar sempre que um fato novo assanha os detratores do mandatário, durante o dia ou à noite. Foi assim na sexta-feira (24), com a demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro.
Moradora do Leme (zona sul do Rio de Janeiro), a professora Talita Tanscheit já sabe que, independentemente do horário em que aconteça o protesto, seus vizinhos do andar de cima, que ela julga serem bolsonaristas, vão responder com uma gravação no alto-falante.
A mensagem repetida na caixa de som é tão chula que Talita evita pronunciá-la. A frase sugere que os participantes do ato peguem suas panelas e enfiem… (naquele lugar mesmo em que dá para imaginar.)
“Acho que ultrapassa o limite. É desrespeitoso e deixa a vizinhança revoltada”, diz a cientista política e docente da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ela, que apoia o levante contra Bolsonaro, tomou providência pelas vias oficiais: acionou o síndico, em vez de reclamar diretamente com os autores.
“Os panelaços estão ocorrendo porque a insatisfação chegou à elite, que agora está sentindo na pele a omissão do governo já conhecida pelas classes mais baixas”, elabora a professora, que do seu apartamento também vê um morador do prédio da frente reagir gritando “mito”, em defesa do presidente.
“Aí o que se ouve de volta são coisas como: ‘fascista’, ‘fora, Bolsonaro'”, narra Talita, ainda à espera de uma solução para sua queixa.
Em outro edifício no Rio e em um condomínio de Manaus, reclamações sobre os panelaços mereceram resposta imediata de síndicos, mas geraram uma segunda onda de revolta.
O comunicado enviado pela administradora de um prédio na Tijuca (zona norte da capital fluminense) para pedir “uma maior consideração” dos paneleiros com os adjacentes foi interpretado como tentativa de cerceamento a uma liberdade democrática.
“O condomínio tem recebido diversas reclamações, por conta de panelaços, som alto e gritarias, onde podemos incluir os mais diversos palavrões”, descreveu a nota do Grupo Líder, a empresa de gestão condominial —que foi procurada pela reportagem e não quis se manifestar.
Embora a circular falasse que qualquer um poderia “fazer uso do seu direito de manifestação”, a súplica para que isso ocorresse “de forma a minimizar ao máximo o transtorno causado aos demais moradores” acabou por deixar dúvidas e inflamar ainda mais os ânimos.
Acusação parecida recaiu sobre Ana Paula Pinheiro, síndica em Manaus. Após receber contestações aos panelaços, ela escreveu aos condôminos “chamando a atenção quanto ao fato” e clamando por “bom senso e também compreensão da coletividade”.
Parte dos moradores enxergou no gesto tentativa de impedir as manifestações, e a pendenga virou notícia na imprensa local. Ela então mandou outro aviso, explicando que o intuito não era esse.
“O informativo foi só para pedir bom senso e tolerância de ambas as partes. Tanto dos que querem se manifestar na varanda quanto dos que reclamam”, diz Ana Paula à Folha. “Gerou certa polêmica, mas não é proibido, de jeito nenhum. Não tinha nenhum cunho político.”
A expressão “emoções à flor da pele”, escrita pela síndica no controverso alerta, tem sido usada por outros gestores de edifícios para descrever o momento. Mais gente está em casa por causa da pandemia, o que faz dispararem os problemas de convivência. E o som das panelas virou mais um fator de pressão.
No último dia de março, Sandra Cristóvão, síndica de um complexo com 1.500 moradores em Pirituba (zona norte de São Paulo), foi chamada para intermediar uma situação inédita em mais de dez anos dela na função.
Uma moradora irritada com o panelaço quis tirar satisfação com o vizinho de outro andar que engrossava a manifestação. “Ela bateu à porta dele e levou uma cusparada no rosto”, relembra Sandra. “O rapaz disse que reagiu assim para não fazer algo pior.”
Segundo a síndica (que não quis mencionar o nome dos envolvidos, para evitar mais problemas), a vítima justificou que se sentiu incomodada com a barulheira porque ela estava “com uma forte dor de cabeça”. O entrevero virou caso de polícia, com boletim de ocorrência registrado pela atingida.
“Depois ela queria que o moço fizesse teste para a Covid-19, com medo de ter sido contaminada. E que o condomínio pagasse o exame.”
Sandra diz que repreendeu a atitude de ambos. “Falei que na democracia é permitido se manifestar. Não era só o apartamento dele que estava fazendo [o protesto]. Ela deve ter tolerância e respeitar a ideologia dele. Se juntarmos as divergências políticas com o estresse do confinamento, onde vamos parar?”