Militares da reserva adotam discurso golpista

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Foto: Jorge William / Agência O Globo

O aviso partiu do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, que classificou a possibilidade de apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro como uma “afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e interferência inadmissível de outro Poder” e que “poderá ter consequências imprevisíveis”.

A contundência do general em nota divulgada nesta sexta-feira (22) corresponde ao tom esperado por uma ala de militares da reserva, conhecidos como grupo “Agir”. Duas semanas atrás, três representantes desse núcleo – liderados pelo coronel Aristomendes Rosa Barroso Magno – encontraram o próprio Bolsonaro, pouco antes de seu pronunciamento em rede nacional naquela mesma noite.

Na audiência, além de solidariedade, os visitantes manifestaram ao presidente a decepção de setores da família militar pela forma moderada com que os comandantes das Forças Armadas vêm atuando na escalada da crise. Como diz o nome do grupo, composto por 100 generais e coronéis da mesma turma do ministro da Defesa, Fernando Azevedo da Silva, o que se espera é mais ação.

Instado a resumir o que entende por ação dos comandantes, Aristomendes Magno, oficial de Engenharia com 37 anos de caserna, explicou: “Cabe às Forças Armadas, como responsáveis pela manutenção das instituições, estabelecer um limites entre os poderes constituídos. Uma das atitudes seria garantir a posse do delegado Alexandre Ramagem na direção da Polícia Federal. Não entendo o posicionando até agora. O governo eleito é a representação da sociedade. Elas não podem fazer patrulhamento a favor do Governo, mas tem de defendê-lo”.

Grupos como o Agir, embora compostos por militares “de pijama”, como são chamados os oficiais da reserva ou reformados, expressam um sentimento que se espalha pela tropa, especialmente pelo jovem oficialato, para o tormento do Alto Comando do Exército, Marinha e Aeronáutica: a ideia de que, para preservar o poder delegado pela sociedade ao presidente, justifica-se jogar pesado contra Supremo Tribunal Federal (STF).

“O que os ministros do Supremo pensam que são? O presidente foi escolhido pelo povo. Não pode ser contido por decisões monocráticas. É um absurdo. Alguma postura precisa ser adotada”, queixou-se um major do Exército da ativa, que aceitou conversar em off com ÉPOCA.

Embora generais ocupem cargos do primeiro escalão do governo, incluindo a Defesa, quem tem a palavra final na chefia do Exército é o comandante, general Leal Pujol. Num raro pronunciamento público, no início da pandemia, ele disse em vídeo que as Forças Armadas estavam enfrentando “o maior desafio na nossa geração”.

Para especialistas, o forte tom do discurso, voltado especialmente para a família militar, destoou a posição do presidente, que no mesmo momento se referia ao Covid-19, em pronunciamento à nação, como gripezinha e resfriadinho.

Nos quartéis, são recorrentes as críticas ao que uma corrente dos oficiais considera “excessos do Judiciário” interferindo sobre o Poder Executivo. A recente decisão do ministro Alexandre de Morais, do STF, vetando a nomeação de Ramagem na PF, por entendê-la como um ato contrário ao critério da impessoalidade no preenchimento do cargo, ampliou ainda mais as críticas. Porém, não há sinais de que o oficialato estaria disposto a avalizar uma ruptura institucional numa eventual desobediência à decisão da Corte Suprema (o que acabou não se consumindo por enquanto), apesar da pressão exercida por setores mais ferrenhos.

“Há nos quartéis certa decepção com o silêncio dos comandantes. Se apoiar na hierarquia e na disciplina é mais fácil do que defender o interesse dos seus comandados. Porém, é preciso lembrar que o presidente legitimamente eleito é o comandante-em-chefe das Forças Armadas. E ele não está sendo amparado pelos seus comandantes. Nada justifica o silêncio”, lamenta o também coronel da reserva Luiz Fernando Walther de Almeida.

Em outubro de 1987, como capitão, Walther sublevou cerca de 50 militares do então 30º Batalhão de Infantaria Motorizado (BIMtz), que desembarcam em quatro viaturas em frente à Prefeitura e à Câmara de Vereadores de Apucarana (cidade paranaense a 366 distância de Curitiba), cercaram o prédio e impediram a entrada e saída de pessoas. Acompanhado pela guarnição, o capitão invadiu o gabinete do prefeito e entregou a um assessor do Executivo Municipal carta de protesto contra os baixos salários e a deficiência do atendimento de saúde aos militares.

O episódio ocorreu no governo Sarney. Um ano antes, Bolsonaro tornara-se conhecido do público quando escreveu um artigo para a revista VEJA no qual criticava salários de oficiais militares. Desde o fim do regime militar, em 1985, porém as crises entre civis e militares não chegaram a abalar a democracia. Uma das mais agudas afetou o governo do presidente Lula (PT), em 2014. No embate entre os dois lados saiu ganhando o comandante Francisco Albuquerque, do Exército, com a demissão do então ministro da Defesa, o diplomata José Viegas.

Viegas entrou em colisão com os comandantes das forças depois de uma declaração dada à imprensa pelo comandante da Marinha, almirante Roberto Guimarães Carvalho, comentando determinação de Viegas no sentido de que os chefes das três forças não deveriam se manifestar sobre questões relativas aos soldos. “Em primeiro lugar, não há nenhuma determinação, e sim uma orientação. Depois, quando eu precisar falar, eu falo”.

A gota d’água para a queda de Viegas foi a divulgação pelo jornal Correio Braziliense, no domingo 17 de outubro de 2004, de fotos – depois reconhecidas como falsas – do jornalista Vladimir Herzog em uma cela de prisão, antes de sua morte sob tortura. No mesmo dia, o Centro de Comunicação Social do Exército divulgou nota, segundo a qual, “as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas”. E concluía que o Exército, “mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a nada conduzem”.

A presença de militares no governo Bolsonaro, diz o historiador Carlos Fico (UFRJ), tem causas evidentes, especialmente a falta de quadros do grupo político que chegou ao poder, mas também o fato de que os militares têm sido o grupo conservador ou de direita mais organizado em um país que, até recentemente, não tinha um partido político expressivo claramente de direita – eles expressam, nesse sentido, o protagonismo, no Brasil, na onda conservadora que se verifica em diversas partes. Assim, os militares seriam o “manancial”, a “fonte” natural que abastece o atual governo.

Para o major do Exército ouvido por ÉPOCA, os militares têm uma formação que os ensina a enfrentar os problemas juntos. O oficial disse que o comando tem de adotar uma postura que mostre que as Forças Armadas estão atentas: “Só não podemos nos omitir. Os militares precisam certo cuidado na hora de falar para não acharem que estamos defendendo determinado partido. Defendemos a família brasileira e o combate à corrupção. O Exército precisa estar ao lado do povo. É perceptível a diferença no trato do Judiciário quando entra a questão partidária. Há mais rigor com o Bolsonaro. ‘Debaixo de vara’ foi desnecessário. Calma aí, Supremo. A nossa postura é a de não abaixar a cabeça”.

No campo ideológico, avaliam especialistas em Defesa, o pensamento militar não mudou tanto nos últimos 50 anos. O oficialato respeita Bolsonaro porque foi o único político, entre muitos, que conseguiu interromper a hegemonia política da esquerda brasileira. Porém, a ideia de que as Forças Armadas podem atuar como poder moderador diante dos arroubos do presidente ou que devem apontar os tanques contra os outros poderes não encontra acolhida no Alto Comando. Para o generalato brasileiro, o único caminho é ficar do lado da lei, da institucionalidade, o que contraria os tradicionais apoiadores de Bolsonaro na caserna.

“Se o governo nomear o Ramagem, o que o ministro Alexandre de Moraes vai fazer? Atravessar a praça dos Três Poderes e dar um mata leão no presidente? Isso é um absurdo. Cabe, de acordo com o Artigo 142 da Constituição, manter as instituições. Se uma delas está extrapolando os seus poderes, cabe as forças armadas impedir isso. Sociedade não quer a descriminalização do aborto e nem o casamento entre as pessoas do mesmo sexo, como o STF pode mudar isso? Dar uma nova interpretação. O STF veio com eufemismo para amenizar uma medida contrária ao que a sociedade pensa”, lamenta Aristomendes Magno.

A decisão do ministro Celso de Mello que falou em condução coercitiva, “debaixo de vara”, para garantir os depoimentos dos ministros militares sobre os bastidores da demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro pôs ainda mais lenha na fogueira por representar uma imposição da proeminência civil sobre os militares desde o fim do regime de 64.

Até então, uma das medidas mais relevantes, no sentido de manter os militares longe da política, foi a criação do ministério da Defesa e a transformação dos antigos ministros do Exército, Marinha, Aeronáutica (e estado-Maior) em comandantes das suas respectivas forças. A partir deste momento, os oficiais ganharam um interlocutor à paisana no diálogo com o mundo político. Hoje, esse interlocutor é um general do Exército, mas isso não foi suficiente para o presidente encontrar na antiga tropa o respaldo pretendido.

Neste caso, para um apoio mais incondicional, a saída para Bolsonaro seria procurar, entre os oficiais do Alto Comando, oficiais de quatro estrelas disposto a assumir o risco, em substituição aos atuais comandantes. Seria uma exceção inédita, que abriria caminho para o perigoso aparelhamento político das Forças Armadas

No momento em que se vê Bolsonaro a frente de caminhadas até o Supremo e protestos na porta do quartel-general do Exército, os militares se tornaram, mais uma vez, os garantes da situação, renovando diante dos olhares desconfiados dos críticos o respeito à Constituição diante do modus operandi do Bolsonaro, um político intuitivo que age por meio de provocações frequentemente “no limite”, como sustenta o historiador Carlos Fico.

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