Conheça a “boiada” do ministro do Meio Ambiente
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A sugestão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para que o governo aproveitasse que as atenções da imprensa estavam voltadas para a epidemia de Covid-19 para “passar a boiada” e, segundo ele, “simplificar” normas ambientais no país gerou críticas entre ambientalistas no Brasil e no exterior. O GLOBO reuniu as principais mudanças orquestradas pelo governo na área ambiental enquanto o número de mortes pela Covid-19 aumentava.
No período, o governo, Salles e seus subordinados promoveram mudanças que vão desde o afrouxamento na fiscalização de exportação de madeira nativa até a anistia a desmatadores de áreas da Mata Atlântica.
Durante a reunião, Salles sugeriu que o governo unisse “esforços” para aproveitar o momento em que a atenção da mídia estava voltada para a epidemia causada pelo novo coronavírus para passar reformas “infralegais”, aquelas que não precisam de aprovação pelo Congresso Nacional e que podem ser feitas por meio de portarias, instruções normativas ou decretos.
— A oportunidade que nós temos, que a imprensa não tá … tá nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx (Lorenzoni) certamente cobrou dele, cobrou do Paulo (Guedes) — disse Salles na reunião.
Um dos casos mais emblemáticos das mudanças “infralegais” citadas por Salles na reunião foi o despacho assinado por ele que reconhece como áreas de ocupação consolidada as áreas de preservação permanente (APPs) desmatadas até julho de 2008. Com isso, fica permitido o retorno de atividades agropecuárias nessas áreas.
A medida tem impactos diretos na preservação da Mata Atlântica, bioma mais devastado do Brasil, porque as APPs são consideradas fundamentais para a segurança hídrica da região. Além disso, ao reconhecer essas áreas desmatadas como consolidadas, a medida abre brecha para que os proprietários que foram multados pelo desmatamento sejam anistiados. A medida foi questionada na Justiça pelo Ministério Público Federal (MPF).
O caso foi até mencionado por Salles durante a reunião, quando ele enfatizou a necessidade de fazer uma dobradinha com a Advocacia-Geral da União (AGU).
— Essa semana mesmo nós assinamos uma medida a pedido do Ministério da Agricultura, que foi a simplificação da lei da mata atlântica, pra usar o código florestal. Hoje já tá nos jornais dizendo que vão entrar com medi…com ações judiciais e ação civil pública no Brasil inteiro contra a medida. Então pra isso nós temos que tá com a artilharia da AGU preparada — disse Salles.
Um dia antes da confirmação do primeiro caso de Covid-19, no dia 25 de fevereiro, em plena terça-feira de Carnaval, o presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Bim, liberou exportações de madeira nativa sem autorização do Ibama.
Até então, para que uma carga de madeira retirada de floresta nativa fosse exportada, era preciso que o Ibama desse uma autorização. O mecanismo era visto como uma forma de diminuir as chances de fraude e exportação de madeira retirada de área ilegal. A medida foi tomada após o pedido de duas associações de madeireiros do Pará. Pouco depois do caso, em março, outra mudança. Em meio à repercussão da liberação da exportação de madeira, Eduardo Bim assinou uma portaria interna que restringiu o acesso de servidores do órgão à imprensa. Funcionários que descumprirem a portaria poderão ser punidos.
A medida é tratada internamente com uma “mordaça” a servidores contrários à gestão de Bim e Salles. Outra mudança adotada na área ambiental foi a reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável por pela gestão de unidades de conservação em todo o Brasil.
A alteração é outro exemplo de mudança infralegal, porque não precisou passar pela chancela do Legislativo, e entrou em vigor em maio.
O órgão, que já vinha passando por um processo de militarização com a nomeação cada vez maior de policiais militares para cargos de chefia em detrimento dos servidores de carreira, viu esse processo se intensificar.
O governo reduziu de 11 para cinco o número de gerências do órgão que é responsável por 334 unidades em todo o Brasil. Por meio de portaria, o comando do ICMBio abriu a possibilidade para que as gerências pudessem ser ocupadas por pessoas de fora do órgão.
O resultado é que das cinco gerências do ICMBio, apenas uma é ocupada por um agente de carreira do órgão. As outras quatro são comandadas por policiais militares. No mesmo dia em que Salles sugeria que o governo aproveitasse o momento para “passar a boiada”, a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou uma instrução normativa que permite a regularização de fazendas em áreas que hoje fazem parte de terras indígenas que ainda estão em processo de homologação.
Como o processo de homologação de uma terra indígena demora muitos anos, a instrução permite que fazendeiros ou grileiros ocupem e regularizem terras em áreas onde haja indícios, por exemplo, de povos indígenas isolados. O risco é que, quando a terra seja efetivamente homologada, boa parte dela já tenha sido desmatada. A medida não teve a assinatura de Salles, mas era uma antiga reivindicação de ruralistas com os quais o ministro tem proximidade. No dia 14 de abril, Salles tomou uma das decisões que causou mais ruído desde o início de sua gestão.
Ele demitiu o então diretor de fiscalização do Ibama Olivaldi Azevedo após uma série de operações do órgão contra garimpeiros que atuavam em terras indígenas.
Olivaldi, porém, foi apenas o primeiro de uma série de exonerações no setor de fiscalização do Ibama após essas operações. Depois dele, outros dois servidores foram exonerados. Ambos haviam sido responsáveis pelas operações de combate a garimpeiros. Outro exemplo de alteração infralegal aconteceu em maio, quando o presidente Jair Bolsonaro decretou a segunda operação de Garanatia da Lei e da Ordem (GLO) para combater crimes ambientais na Amazônia. A primeira foi decretada em 2019, em meio à repercussão negativa internacional sobre o aumento no número de queimadas na Amazônia.
Mas ao contrário do que ocorreu em 2019, a GLO deste ano trouxe uma novidade que retirou ainda mais poder dos órgãos ambientais ligados ao MMA. O decreto determina que o Ibama e o ICMBio ficarão subordinados às Forças Armadas nas operações que forem realizadas durante a GLO.
A mudança veio com a inclusão de uma pequena frase no decreto de 2020 em relação ao de 2019. A subordinação aos militares foi criticada por servidores e ambientalistas.
Na avaliação do coordenador de políticas públicas do Greenpeace no Brasil e secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini, a fala de Salles soa como uma convocação a uma “força-tarefa” de destruição do meio ambiente.
— A gente viu um ministro de estado numa conversas de comparsas convocando para aproveitar o momento da pandemia, em que todo mundo está preocupado com a vida, para fazer uma força-tarefa de destruição do meio ambiente — afirmou.
Astrini diz que, a partir da fala de Salles, é possível perceber que ele sabia que o que estava fazendo era errado. Tanto assim que Salles fez questão de enfatizar a necessidade de ter respaldo jurídico da AGU.
— Ele sabia que, para evitar problemas jurídicos, ele precisou encomendar pareceres jurídicos junto à AGU. É um absurdo por si só — disse Astrini.
A reporagem enviou questionamentos ao MMA, mas até o fechamento desta matéria, o órgão não havia se manifestado.