Brasil contraria o resto do mundo com flexibilização prematura
Foto: REUTERS
Quem vê o noticiário pode pensar que a pandemia do novo coronavírus está vivendo dois momentos diferentes ao mesmo tempo no Brasil.
Um é o drástico momento de ver que a doença continua matando cada vez mais gente. É o que apontam os recordes sucessivos de casos e mortes por covid-19 divulgados pelo Ministério da Saúde nos últimos dias. O Brasil já é o segundo país em casos, com mais de meio milhão, e o terceiro em mortes, que passam de 30 mil.
O outro, é o momento de achar que o pior já passou, que a pandemia parece já estar sob controle, a julgar pelos vários Estados brasileiros que estão flexibilizando suas quarentenas.
É verdade que muitos países também estão seguindo, ou já seguiram, o caminho da flexibilização das medidas de isolamento.
Mas a grande maioria desses países só adotou medidas de flexibilização depois que o número de casos novos e mortes começou a cair, explica o epidemiologista Antonio Moura da Silva, professor do departamento de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) — países como China, Alemanha, Reino Unido, Itália, Espanha e França.
O Brasil está flexibilizando a quarentena enquanto os números ainda estão aumentando e sem saber se a pandemia já chegou ao pico. “É uma insanidade”, diz Silva.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda seis critérios para flexibilizar o isolamento social. Mas o Brasil ainda não atende alguns deles.
Os novos casos devem ser esporádicos e concentrados em certos lugares — e em um nível que não sobrecarregue o sistema de saúde.
Um país também deve fazer testes em massa para identificar os casos e seus contatos, e isolar e tratar a todos.
É preciso proteger especialmente locais mais vulneráveis a surtos, como favelas, por exemplo, e tomar medidas para reduzir o risco de transmissão do vírus em locais de trabalho.
E também tentar impedir a importação e exportação de casos e garantir que a população esteja consciente e comprometida com as ações de combate à pandemia.
A Escola de Governança Blavatnik, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, avalia 170 países em quatro destes critérios — ficam de fora a prevenção no trabalho e em lugares mais vulneráveis — e dá uma nota entre 0 e 1 para cada país.
Quanto mais longe da nota 1, menos preparado um país está para flexibilizar o distanciamento social. A nota do Brasil neste momento é 0,6.
O país vai bem em dois critérios: a prevenção de casos importados e exportados, porque as fronteiras estão fechadas, e a conscientização da população, ainda que o isolamento tenha deixado a desejar.
O problema são a explosão de novos casos e mortes e a falta de uma política nacional de testagem, investigação de contágios e isolamento de casos.
Beatriz Kira, uma das pesquisadoras de Oxford responsável pelo estudo, destaca que quase todos os países não atendem os critérios avaliados — só a Nova Zelândia recebeu a nota máxima —, e que muitos estão flexibilizando seus isolamentos mesmo assim.
“É uma escolha difícil. É preciso considerar muitas variáveis, como o impacto sobre o sistema de saúde, a educação das crianças, a economia, a saúde mental das pessoas”, diz Kira.
Mas um dos primeiros critérios levados em conta para relaxar as quarentena é um país ter passado do auge da pandemia, e não há indícios de que o Brasil tenha chegado ao pico, afirma a pesquisadora.
“O que também diferencia o Brasil dos outros países é que seu número de novos casos e mortes continua batendo recordes.”
O epidemiologista Antonio Moura da Silva diz que alguns objetivos deveriam ser atingidos antes de o país flexibilizar o distanciamento social.
Um deles é ter uma ocupação dos leitos de unidades de tratamento intensivo (UTI) de no máximo 70%, para haver alguma folga que dê conta de um aumento súbito de novas infecções.
Outro é a curva de novos casos estar caindo há 14 dias, tempo suficiente para saber essa tendência é temporária ou não. E uma taxa de contágio (R0) abaixo de 1, também por duas semanas.
Esse índice, o R0, indica quantas pessoas alguém que tem o vírus pode infectar e é fundamental porque, quando fica menor do que 1, o número de novos casos para de crescer e começa a cair. O isolamento social é uma as formas mais eficazes de conseguir isso.
No entanto, a taxa de todos os Estados brasileiros, calculadas pela Universidade Johns Hopkins, ainda estão acima deste patamar, aponta Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV).
“A Alemanha adotou uma taxa de 0,7 para a maioria das regiões que fizeram a reabertura, por exemplo. Aqui, não estamos usando esse critério”, diz Spilki.
Para o virologista, o parâmetro mais comum no Brasil é a lotação das UTIs, mas isso dá só uma visão de curto prazo da pandemia e não permite saber se ela está sob controle.
“A gente não consegue saber o que vai acontecer na próxima semana ou daqui a 15 dias. A taxa de contágio permite fazer isso.”
O desencontro das mensagens dos governos estaduais e municipais, que implantaram as quarentenas, e o governo federal, que foi contra essas medidas, prejudicaram a adesão ao isolamento no Brasil, que não foi suficiente para reduzir a taxa de contágio a índices satisfatórios.
Os casos continuaram a subir. Mas também aumentou a pressão popular para o retorno a normalidade com reabertura do comércio — sem nunca ter fechado de fato.
Por isso, os Estados e municípios agora cedem a esses apelos, avaliam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, mesmo em condições bem desfavoráveis, e isso deve agravar ainda mais os impactos da pandemia.
O surto no Brasil, que já é mais longo do que o de outros países, deve se prolongar ainda mais, diz Fernando Spilki.
“Isso vai gerar um prejuízo econômico ainda maior, porque vamos reabrir, ter novos surtos e ter de fechar tudo outra vez onde isso acontecer”, afirma o presidente da SBV.
“É uma aposta e que provavelmente vai dar errado, e o número de novos casos e mortes vai aumentar”, diz Antonio Moura da Silva, da UFMA.
O médico Bharat Pankhania, professor palestrante da Escola de Medicina da Universidade de Exeter, no Reino Unido, especializado em controle de doenças infecciosas, critica a opção de reabrir a economia no Brasil enquanto o vírus ainda circula amplamente.
“As pessoas vão ser infectadas, e os governantes serão responsáveis pelos brasileiros que vão morrer por causa disso”, diz Pankhania, que defende que quem puder se mantenha isolado.
“As pessoas podem tomar precauções individualmente, mas essa responsabilidade também é dos empregadores. É uma decisão pode ser feita em todos os níveis.”
Mesmo assim, reconhece o médico, a parcela da população mais pobre fica mais vulnerável: “Assim como aqueles que seguem um líder que está errado cegamente”.