Empresa de disparo de mensagens burla ordem judicial
Foto: Estúdio Rebimboca/UOL
Duas empresas responsáveis por envios de mensagem em massa via WhatsApp encontraram maneiras de vender pacotes de disparos automatizados mesmo após decisões da Justiça impedi-las. Uma delas, proibida desde abril, continua atendendo pelo telefone antigo e até mandou um catálogo de preços para a reportagem.
Yacows e SallApp foram processadas pelo WhatsApp, que obteve decisões liminares para afastá-las da estrutura do mensageiro. O serviço, no entanto, segue funcionando. Advogados consultados por Tilt enxergam indícios de desobediência judicial.
A atuação dessas empresas ganhou destaque depois da revelação de que serviços de disparo em massa de mensagens via WhatsApp foram usados na campanha eleitoral de 2018. Em outubro de 2018, às vésperas do segundo turno da eleição, a reportagem do UOL teve acesso a dados do serviço de disparo de mensagens em massa da Yacows e revelou que os sistemas foram usados pela campanha do então candidato Jair Bolsonaro (à época, no PSL) e também pela campanha de Fernando Haddad (candidato do PT, derrotado na disputa do segundo turno). Uma série de reportagens investigativas decorrente do acesso aos dados desse sistema foi a vencedora da primeira edição do Grande Prêmio UOL de Conteúdo.
Antes, também em outubro de 2018, reportagem da “Folha de S.Paulo” havia revelado que o serviço foi contratado por apoiadores do presidente, de forma não oficial —motivo de questionamento da chapa presidencial Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão em processos na Justiça Eleitoral. O esquema violaria a lei por envolver financiamento de empresários em doações não declaradas à campanha.
O WhatsApp, por sua vez, se mexeu ao ver sua plataforma usada como campo aberto para distribuição de notícias falsas e levou algumas das “máquinas de spam” à Justiça. A primeira decisão favorável veio em abril, quando a Yacows foi obrigada a parar de “desenvolver, distribuir, promover, operar, vender e ofertar serviços de envio de mensagens em massa pelo WhatsApp”. A decisão também vale para a Kiplix, Deep Marketing e Maut, outras marcas da empresa.
O envio de spam não é proibido no Brasil, por isso o WhatsApp acusou as empresas de usar sua identidade visual e nome sem autorização. Argumentou ainda que os disparos ferem seus termos de uso. O juiz Eduardo Palma, da 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Tribunal de Justiça de São Paulo, acatou. A decisão foi contestada, mas a liminar não foi derrubada, portanto continua valendo.
Na terça-feira (23), reportagem ligou para a Yacows usando o telefone que consta no site da empresa e constatou que ela continua atendendo clientes novos e antigos.
“Agora é Message Flow”, explicou a atendente, identificada como Carolina, ao ser questionada sobre se o telefone pertencia à Yacows.
Após a reportagem negar ter uma conta aberta, ela logo ofereceu abrir uma nova e passou a explicar a oferta.
“Os pacotes mínimos são de 5.000 créditos, R$ 0,12 por envio, o valor é de R$ 600. Trabalhamos com volume. Quanto maior a quantidade, menor o valor. Mensagem de texto eu cobro um crédito, mensagem com anexos, como vídeo, áudio ou imagem, cobro dois créditos”, afirmou. Esta era a mesma forma de atuar da Yacows.
Em seguida, mandou um menu com diversos planos para o WhatsApp da reportagem —o mais caro, com 1 milhão de disparos, cobra R$ 0,062 por envio, totalizando R$ 62 mil.
Ela mencionou que o pagamento poderia ser via cartão de crédito ou por transferência bancária para uma empresa até então não mencionada, a Unifour Marketing.
Questionada sobre o fato inusitado de que a reportagem ligou para uma empresa, descobriu que ela mudou de nome e faria o pagamento para uma terceira, a atendente disse que a Message Flow é o nome fantasia da Unifour, que comprou a Yacows.
Aberta 22 dias após a decisão judicial que proibiu a Yacows de atuar, a Unifour tem Andressa Campo Ferreira como sócia-proprietária. Em contato com Tilt, a dona do negócio confirmou ser ex-funcionária da Yacows e repetiu a história de que a Unifour comprou a Yacows.
“A Message Flow comprou a Yacows, a Bulk Service, e hoje ela está no meu nome. Peguei a operação da Bulk para mim, porque já entendia, e decidi dar sequência nisso.”
Bulk Services é o nome da plataforma criada pela Yacows para disparar mensagens em massa e compartilhada com outras três empresas também proibidas de atuar pela decisão de abril: Kiplix, Deep Marketing e Maut Desenvolvimento.
Não há documentos na Junta Comercial que mostrem que a transação foi feita. Questionada, Ferreira não explicou por que continua a oferecer os disparos em massa nem como uma empresa com capital social de R$ 5.000 consegue incorporar outra, com capital de R$ 100 mil. O advogado da Yacows foi procurado, mas ainda não retornou aos contatos. Após ser perguntada sobre como mantinha a operação apesar de decisão judicial impedindo a operação, a empresária encerrou a conversa.
O site da Message Flow, também no nome de Ferreira e registrado menos de uma semana após a proibição judicial, é uma cópia deliberada da página da Bulk Message. Repetem-se nos dois, coisas como:
Textos explicativos: “faça o upload da sua lista de contatos ou adquira uma lista segmentada e cria campanhas de marketing direito”;
Atestados de competência, ainda que a Message Flow tenha pouco menos de dois meses de vida: “só que já executou mais de 700 mil campanhas pode garantir!”;
E até depoimentos de clientes satisfeitos com o serviço: “A Bulk/Message Flow é a ferramenta que nos permitiu ter uma interação mais eficaz com nossos clientes, uma vez que nos permite fazer relacionamento por meio das mensagens, aumentando assim a efetividade da comunicação”, relata Emanuel, um suposto franqueado da Blue Fit.
As duas empresas compartilham ainda o telefone, como ficou comprovado pela reportagem —além da nova empresa prestar atendimento para clientes antigos da plataforma Bulk Services.
Segundo especialistas consultados por Tilt, são fortes os indícios de que a empresa foi criada para driblar a Justiça. “Dá para chamar isso de simulação ou fraude processual, mas também de fraude ao mercado”, diz Luciano Bresciani, sócio do escritório Rennó, Penteado, Reis & Sampaio.
Essa manobra, diz, pode até atrapalhar outras investigações, já que a Yacows é figurinha carimbada na CPMI das Fake News, que corre no Congresso. Para o advogado, pode ser um caso de “confusão patrimonial”, em que infraestrutura, sócios, modo de trabalho, conhecimento e funcionários de uma empresa são compartilhados com uma segunda, para escapar de uma restrição judicial.
“Há uma transferência de clientela e modus operandi. Isso aplicado a outra empresa, agregado ao direito de uso da plataforma, pode indiciar para uma continuidade das atividades empresariais.”
Segundo André Bruni, especialista em direito processual e sócio do escritório Bruni e Advogados, os indícios que apontam para uma ligação entre a empresa nova e as rés são: mesmo telefone, mesmo software usado, a pessoa que lidera e controla a nova sociedade era ligada à antiga e, o mais forte, os serviços são exatamente os mesmos.
“Como as quatro companhias estão sofrendo os efeitos da decisão judicial, aparentemente há uma tentativa de desvio, de não atendimento da decisão judicial por uma via transversa, por uma forma que se construiu para que o novo CNPJ não estivesse debaixo dessa decisão judicial”, explicou.
Tilt apurou que o WhatsApp estuda levar o caso à Justiça. No caso da SallApp, impedida de atuar em março, o aplicativo já havia notado o descumprimento e notificado o juiz. Pediu ao TJ-SP em abril que o site da infratora fosse ficasse indisponível e que ela pagasse R$ 20 mil por dia de desobediência. O juiz Palma considerou o pedido excessivo e definiu a multa diária em R$ 5.000, com teto de R$ 200 mil.
Recorrer à Justiça foi uma estratégia do aplicativo após lançar mão de outras soluções para conter o avanço das notícias falsas em seu app. Nessa linha, o WhatsApp:
passou a detectar contas com comportamento suspeito e suspendê-las;
reduziu o número de reenvios (de 20 para 5 e para apenas um, no caso de mensagens altamente encaminhadas)
e deu mais controle aos usuários sobre os grupos em que podem ser incluídos
Nada disso parece ter surtido efeito, já que o WhatsApp entrou na Justiça com o argumento de que as “máquinas de spam” infringiam seus termos de uso. Como este uso não é ilegal, o aplicativo argumentou que as empresas trabalhavam explorando suas propriedades intelectuais sem autorização.
No meio do processo, o WhatsApp ainda admitiu que não possui plenos poderes para desarticular operações de disparo em massa. Isso foi assinalado pelo juiz em sua decisão, que ressaltou a limitação técnica:
“Há indícios de que os réus estariam violando limitação técnica do software da autora [WhatsApp], permitindo que seus clientes encaminhassem mensagens em massa a terceiros”, escreveu o juiz do TJ-SP.
O WhatsApp está prestes a ganhar novas armas no combate às mensagens em massa. Nada de algoritmos mais potentes, porém. Acontece que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu em 2019 o uso de disparo em massa de propaganda eleitoral. A restrição valerá pela primeira vez na eleição deste ano e renderá multa entre R$ 5.000 e R$ 30 mil aos infratores.
Outra boa notícia para o WhatsApp pode vir do polêmico PL das fake news” que a empresa tanto repudia. O projeto, aprovado no Senado e encaminhado à Câmara, pretende obrigar o aplicativo a registrar encaminhamentos de mensagem —e o WhatsApp considera que isso trata todos como suspeitos e funciona como um tornozeleira eletrônica, mas também proíbe de vez qualquer disparo automatizado de mensagem em massa em apps mensageiros.