“Documentário” bolsonarista ataca medidas sanitárias da covid19

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Foto: Reprodução

“Essa peça não é contra os métodos de prevenção ao Covid-19. Toda crítica aqui exposta é direcionada aos governantes que fazem uso irrestrito do poder”.

Assim começa a nova produção da Brasil Paralelo, que se especializou em criar documentários com viés conservador. Tornou-se nos últimos anos uma das principais vozes na guerra cultural empreendida pela direita alinhada ao presidente Jair Bolsonaro e ao filósofo Olavo de Carvalho.

Após soltar filmes sobre o golpe de 1964 e o fracasso da educação brasileira, a produtora gaúcha se volta agora para a grande notícia dos tempos atuais, a pandemia.

Com quase duas horas de duração, “7 Denúncias: As Consequências do Caso Covid-19” estreou no YouTube na última terça-feira (30). Tinha mais de 400 mil visualizações até a manhã de sexta (3).

A íntegra está aqui.

Como o próprio nome indica, é uma visão bastante refratária à forma como o coronavírus vem sendo tratado.

Mas, ao contrário do que o disclaimer no início do documentário promete, opõe-se explicitamente aos métodos de prevenção da Covid-19, ao menos os mais utilizados no mundo: é crítica a isolamento social, fechamento do comércio, uso de máscaras, o papel da imprensa e a orientação de cientistas e da OMS (Organização Mundial da Saúde).

É também um documentário que destoa das produções anteriores da Brasil Paralelo, que se esforçavam para abrir um debate de uma perspectiva conservadora, mas sem a estridência comum do bolsolavismo.

Desta vez, a produtora parece ter assumido seu papel na tropa de choque digital do presidente, talvez porque precise energizar sua base de assinantes. Poderia ser um documentário feito pelo canal Terça Livre, e não apenas pelo tom, mas também em razão da qualidade.

Ao contrário de produções anteriores, que tinham esmero técnico, este é claramente um filme feito às pressas. Há longos e enfadonhos depoimentos (sobretudo de um cientista político youtuber que grita por longos minutos a fio), problemas de informação e erros que uma revisão cuidadosa detectaria.

O documentário é dividido em sete partes, cada uma sendo uma “denúncia” quanto a algum aspecto da crise. Mas nenhuma delas é sobre a inépcia do governo Bolsonaro.

Não há menção sobre seu histórico pronunciamento à TV em que tratou a Covid como uma “gripezinha”, e zero referência às aglomerações que o presidente causou em andanças por Brasília, ou à sua insistência de que a preocupação com a epidemia é uma histeria.

Também não se denuncia o fato de o país ter trocado duas vezes de ministro da Saúde em plena crise, nem de estar com um interino na pasta há mais de um mês. E ignora-se a escalada vertiginosa do número de mortos (mais de 62 mil, no momento em que este texto é escrito).

Em vez disso, o documentário se ocupa de atacar a perda de liberdade individual causada por decisões de governadores e o pânico gerado pela mídia, sempre com trilha sonora de suspense, ou marcial.

“Defender que o governo invada a liberdade de alguém é criar um precedente perigoso. Hoje você pode concordar com o motivo, mas amanhã a mesma invasão pode ser por motivo de que você discorda”, diz o locutor.

O fechamento da economia e os lockdowns adotados por algumas cidades são comparados a medidas totalitárias dos regimes nazista, soviético ou iraniano.

“Pânico social, alarde midiático e o iminente risco à vida fazem com que o povo aumente a aceitação do que o governante pode ou não fazer”, diz.

Previsivelmente, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), maior adversário de Bolsonaro na pandemia, é retratado como um dos mais autoritários, especialmente quando diz que toma suas decisões com base na ciência.

“Quando um político fala em nome da ciência, é preciso tomar cuidado”, alerta o documentário, para quem ciência, de qualquer modo, parecer ser algo superestimado.

“No caso dos cientistas, ser imparcial, racional e capaz de analisar o que está sendo observado não é a regra, é a exceção”, diz.

Em tom de denúncia, acusa-se o Supremo Tribunal Federal de ter dado poder para governadores e prefeitos fecharem o comércio “sem levar em conta quem estava doente e quem não estava”. Adotar esse critério, obviamente, significaria inviabilizar o isolamento social.

“O fechamento de shoppings, bares, restaurantes, lojas e escritórios removeu de grande parte dos brasileiros as suas oportunidades de trabalho. E sem o dinheiro desse trabalho, fica impossível para grande parte da população continuar consumindo do povo que ficou aberto”.

Todo trabalho, deduz o filme, é essencial para quem dele depende, e por isso deveria ser liberado.

Num momento em que se distancia um pouco da militância e parece mais técnico, a produção faz um necessário arrazoado sobre as muitas acusações de corrupção na compra de ventiladores e outros equipamentos.

Aponta também a permissividade da legislação excepcional criada no início da crise, que abriu as portas para superfaturamento e fraude.

Mas num raro reparo a Bolsonaro no filme, ao criticar a medida provisória que isenta de responsabilidade gestores que cometeram erros no combate à pandemia, a informação dada é incompleta. Faltou dizer que a medida foi na prática tornada inócua pelo Supremo Tribunal Federal.

Quase no fim, o filme enfileira uma deprimente sequência de agressões e xingamentos sofridos por repórteres da TV Globo de apoiadores de Bolsonaro nas ruas, para demonstrar uma suposta perda de credibilidade da imprensa. Nenhum reparo é feito a estes ataques.

A Brasil Paralelo diz financiar-se de modo totalmente privado, apenas com apoio de seus assinantes, e tem prometido ser mais ágil na produção de documentários que anteriormente demoravam mais de um ano para ficarem prontos.

A atual produção é sua primeira experiência neste novo formato. Ainda não há novos projetos anunciados.

Folha