RN ensaia reabertura com covid19 comendo solta
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No Rio Grande do Norte, o primeiro caso de Covid-19 foi registrado no dia 12 de março de 2020 (uma jovem de 24 anos que esteve na França, na Itália e na Áustria). Um mês depois, foram registrados 304 casos e 15 mortes, a maioria concentrada nas duas maiores cidades do estado, Natal e Mossoró. Naquele momento, a média móvel de 15 dias era de 48,87 novos registros. Sessenta dias depois, a média móvel era de 376,4 registros. No dia 07 de junho, o estado anunciou o maior número da média móvel, 784,27 casos. Um mês depois, é registrada uma queda, com média móvel de 314 novos casos registrados.
No dia 12 de julho, portanto quatro meses após o primeiro caso confirmado, a Secretaria de Saúde Pública do Rio Grande do Norte informava que 40.690 norte-riograndenses foram contaminados pelo SARS-CoV-2, contabilizando 1.459 mortes confirmadas. Em termos proporcionais, 1.162 casos e 41,68 óbitos por 100 mil habitantes.
O mês de junho, portanto, registra a maior alta de casos confirmados e óbitos na história do estado, respectivamente, em 07 e 22 de junho de acordo com dados do LAIS/UFRN. De fato, por volta de 24 de junho, a ocupação de leitos críticos disponíveis no estado chega a uma situação próxima ao esgotamento: 96% na região metropolitana de Natal e a 98% na região de saúde de Mossoró, os dois polos com maior oferta de leitos do estado. Por outro lado, os índices de reprodutibilidade do Covid-19 têm estado ao redor de 1,0 desde 22 de junho.
A despeito dessa situação epidemiológica crítica, entre maio e junho, o governo do estado apresenta o seu plano de retomada das atividades e, em primeiro de julho, o Rio Grande do Norte deu início à retomada gradual das atividades econômicas. Como se tratasse de uma corrida para ver quem chega primeiro no processo de retomada, o prefeito da capital, Natal, antecipou em um dia a retomada no município. No segundo maior município do estado, Mossoró, a prefeita editou um decreto para que a retomada das atividades econômicas fosse mais ampla do que em nível estadual.
Aquilo que deveria ser cuidadoso, tornou-se ruidoso. A retomada econômica passou a ser objeto de disputa política, contrariando, nos maiores municípios, o protagonismo do governo estadual observado desde o mês de março de 2020.
Uma semana antes, o terceiro maior município do Rio Grande do Norte, Parnamirim, já havia editado um decreto no mesmo sentido, que é o de antecipar-se às iniciativas do governo estadual.
O Rio Grande do Norte é governado por Fátima Bezerra, do PT. Natal, por Álvaro Dias, do PSDB, sendo um dos principais opositores ao governo estadual. Mossoró, governada por Rosalba Ciarlini Rosado, filiada ao Progressista, e Rosano Taveira, prefeito de Mossoró, filiado ao Republicanos, também integram a oposição.
A retomada das atividades econômicas, em nível estadual, obedece ao disposto no Plano de Retomada Gradual da Economia, que foi apresentado no dia 05 de maio ao Comitê Científico do Rio Grande do Norte pela Federação das Indústrias do estado (FIERN) e outras associações do setor produtivo como Fecomercio, Fetronor, Faern, assim como o Sebrae. A ideia inicial era de que a retomada estivesse condicionada à queda na curva de contaminação e na menor ocupação de leitos públicos de UTI. O governo estadual, seguindo recomendação da Organização Mundial da Saúde, adotou, incialmente, o percentual de 70% na ocupação dos leitos de UTI como parâmetro oficial para o início do processo de retomada. Curiosamente, ao final de junho, o governo do estado altera o parâmetro de ocupação de leitos.
A expectativa de que o primeiro decreto fosse publicado no dia 17 de junho foi frustrada ante o percentual de ocupação dos leitos públicos de UTI, muito acima dos 70%, superando o parâmetro em mais de vinte pontos percentuais (93% de ocupação no dia 16 de junho). O governo estadual prorrogou a reabertura para o dia 24 de junho, e depois para o dia 01 de julho. Seguiram-se à frustração uma série de críticas do setor empresarial e na imprensa, incluindo um editorial do maior jornal do estado, a Tribuna do Norte, argumentando de que o estado estaria à beira de um colapso econômico. A queda das atividades econômicas também tem tido forte impacto na arrecadação tributária do estado, que, já vindo de uma situação fiscal crítica antes da pandemia, também tem interesse em retomar ao menos parte dessas atividades.
As críticas de setores influentes surtiram efeito, levando o estado a publicar o decreto autorizando a primeira das três fases de reabertura, mesmo que a ocupação de leitos ainda estivesse acima de 70% em vinte pontos percentuais. O argumento era de que novos leitos de UTI seriam abertos, e que a redução da taxa de transmissibilidade permitia majorar o patamar máximo de 70 para 80% de ocupação de leitos críticos de UTIs como parâmetro mínimo para o processo de reabertura controlada das atividades.
Nos municípios e em nível estadual, a retomada gradual das atividades econômicas tornou-se assunto mais político do que técnico. Poucas, porém, foram as vozes críticas.
Ministério Público Federal no Rio Grande do Norte (MPF/RN), o Ministério Público do Trabalho no estado (MPT/RN) e o Ministério Público estadual (MP/RN), no dia 03 de julho de 2020, emitem uma nota pública alertando para os possíveis efeitos na curva de contaminação, recomendando a reversão desse processo de retomada econômica e sugerindo a efetivação do isolamento social, que permanece baixo, com medidas de testagem em massa, rastreamento de contaminados e implementação de barreiras sanitárias nas principais rodovias do estado. Destaca, ainda, que não haveria razões científicas para embasar a decisão de reabertura, ainda que gradual e controlada, da economia. As mesmas observações são feitas para o município de Natal na nota pública emitida.
Com base nas recomendações do nono relatório do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste (C4NE), a nota conjunta dos MPs destaca a recomendação desse órgão cientifico e consultivo para que tanto o governo do RN quanto a prefeitura do Natal adotem “uma completa reversão do plano de relaxamento (ou flexibilização) oferecido pelo comitê local do governo do Rio Grande do Norte e da prefeitura de Natal é necessária para evitar que a situação do estado se agrave consideravelmente.”
O que se observou, porém, foi uma nova abordagem dos governos. Em 15 de julho, o governo do RN anuncia a reabertura de restaurantes de até 300 metros quadrados, outras lojas de rua e academias e assemelhados desde com ventilação natural que devem seguir os protocolos de segurança. Não surpreendentemente, quem anuncia o início dessa nova fase não é o secretário de saúde, mas sim o secretário de tributação (fazenda), Carlos Eduardo Xavier. Mesmo sem atingir o patamar de menos de 80% de ocupação de leitos de UTIs no estado, o governo prossegue na “corrida” para a abertura.
Ao longo do mês de junho, a prefeitura do Natal começa um processo de testagem rápida da população sem nenhum critério técnico, inicialmente (16 de junho) em sistema drive thru no estacionamento da Arena das Dunas, principal arena esportiva do estado, e posteriormente (no dia 23 de junho) no ginásio Nélio Dias, na Zona Norte da cidade, a mais populosa. A ação foi amplamente divulgada nas mídias locais, mesmo frente às críticas de especialistas de que tal ação não parece ser efetiva.
Em Nota, o Ministério Público alertou o município que “gastos milionários” com testagem sem critério técnico poderia ser interpretado como prejuízo ao erário público, exortando o gestor municipal a obedecer a nota técnica emitida pela própria Secretaria Municipal de Saúde para assegurar a testagem a grupos prioritários.
O processo de reabertura das atividades econômicas atualmente está em um segundo nível da primeira fase (denominada de segunda fração), iniciada no dia 15 de julho. Uma vez mais, a prefeitura do Natal antecipou em um dia a abertura no município, em relação à data estipulada pelo governo estadual. A prefeitura de Parnamirim, por sua vez, antecipou em cinco dias.
Claramente há uma disputa política entre os gestores dos maiores municípios e o governo estadual. A diminuição no percentual de ocupação dos leitos de UTI também foi objeto de disputas. O governo estadual alega que essa redução se deu em parte pela redução da velocidade de transmissão e em parte pela ampliação dos leitos de UTI, dados confirmados pelo LAIS/UFRN.
Mas o prefeito de Natal tem outra explicação para a possível queda nas taxas de óbitos e casos. No dia 14 de julho, o prefeito , em entrevista à afiliada local da Rede Globo, creditou a redução do número de casos à distribuição de remédios como a hidroxicloroquina e a azitromicina, como profilaxia nos primeiros dias dos sintomas, e o vermífugo ivermectina como preventivo, distribuído gratuitamente na rede pública municipal. O episódio gerou uma corrida a ivermectina nos postos de saúde e nas farmácias da cidade e do estado. Sobre o uso do vermífugo ivermectina para prevenção ao coronavírus, o prefeito alegou que, se sua eficácia foi cientificamente comprovada in vitro, seria razoável esperar a sua comprovação in vivo, contrariando todas evidências científicas a respeito e que, em sua opinião, seria essa medicação, fornecida pela prefeitura de Natal, que explicaria a queda de casos e óbitos no município.
O uso da ivermectina foi defendido por 300 médicos do estado em nota pública, ao passo em que foi criticado por outra nota pública emitida por professores do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN. Também há nota em sentido contrário emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Em suma, a pressão pela retomada das atividades econômicas e da arrecadação tributária tornou-se uma corrida para ver quem chega primeiro na reabertura entre os governos estadual e os municipais que têm um chefe do executivo a postos para marcar posição diversa nas eleições que estão por vir. Tendo em vista que permanecem mais expostos à doença os mais vulneráveis socialmente, o mais provável é que entremos numa segunda onda sem mesmo ter finalizado a primeira.
Nota: O texto faz parte do projeto “Os governos estaduais e as ações de enfrentamento à pandemia de covid-19 no Brasil” coordenado pela pesquisadora Luciana Santana (Ufal).
Há uma disputa entre as interpretações e recomendações do comitê científico do Consórcio Nordeste – liderado por Miguel Nicolelis – e os especialistas do RN. Uma disputa de interpretações sobre a situação do RN gerou a saída do representante do RN – professor Ricardo Valetim – do comitê em maio de 2020 com o argumento de que haveria um desconhecimento da realidade no interior do RN por parte dos especialistas. Desde então, o comitê científico do Nordeste não tem representante do RN. As observações contidas no relatório desse comitê são claras farpas em crítica aos especialistas do RN, indicando uma disputa política pela validade dessas interpretações.