Ifood é acusado de ameaçar e impor regras a autônomos
Foto: ROBERTO PARIZOTTI/FOTOSPUBLICAS
Um dos principais aplicativos de delivery no Brasil e fonte de renda para milhares de pessoas sem emprego formal, o IFood gerencia o trabalho de sua massa de entregadores — pelo menos 170 mil — por meio de dois sistemas principais: “Nuvem” e “Operador Logístico (OL)”.
O primeiro é aquele entregador que espera uma corrida geralmente parado em ruas com concentração de restaurantes e supermercados. Se ele estiver cansado, porém, pode simplesmente desligar o celular e voltar para casa. De certa forma, quem “organiza” o trabalho do “entregador nuvem” é ele próprio e também o aplicativo: em resumo, o app escolhe alguém próximo ao estabelecimento, envia o pedido a ele e, depois do serviço, efetua seu pagamento.
Já o sistema de operador logístico é diferente: ele tem sido visto como uma terceirização de parte dos colaboradores do IFood. Há quem diga que esse modelo proporcione uma renda maior aos entregadores, mas críticos e outros trabalhadores enxergam o OL como uma forma de aumentar o controle sobre o trabalho: o sistema seria mais um fator que contraria o discurso de autonomia sempre ressaltado pelos aplicativos.
Na verdade, operador logístico é uma empresa menor, subcontratada pelo IFood para organizar e gerenciar uma frota de entregadores fixos. Segundo a companhia, essas terceirizadas “contribuem em diversos cenários, como atendimento a localidades específicas, como shoppings, abertura de novas regiões, complemento da frota em determinados dias e horários.”
Algumas dessas frotas têm até 400 pessoas rodando por São Paulo, segundo apurou a reportagem. Usam principalmente moto, mas também bicicletas e patinetes (esses precisam ser alugados por uma diária de R$ 21,50). Dentro da categoria, quem faz entregas no sistema é conhecido como “entregador OL” — os gerentes dessas pequenas empresas são chamados “líderes de praça”.
Nesse modelo, o entregador tem uma escala de trabalho semanal: ele precisa cumprir um horário fixo todos os dias, além de ter direito a uma folga por semana, desde que ela seja combinada com antecedência. Porém, diferente do “entregador nuvem”, o OL não pode desligar o aplicativo quando quiser nem decidir ficar em casa em determinado dia.
Apesar de cumprir jornadas e escalas pré-determinadas, ao estilo de um trabalhador formal registrado pela CLT, o entregador OL do IFood não tem salário fixo, férias e folgas remuneradas, ou mesmo 13º salário. Ele também não ganha qualquer remuneração quando fica parado esperando por corridas — só recebe se fizer alguma.
Quem paga efetivamente o trabalhador não é o IFood, como no modelo “nuvem”. A companhia remunera a empresa terceirizada, que fica responsável por pagar todos os membros de sua frota. Nos termos de uso da plataforma, que devem ser assinados por quem queira fazer entregas como OL, o IFood explica como funciona:
“Para os entregadores vinculados aos Operadores Logísticos, as entregas e as gorjetas pagas pelos clientes finais são pagas pelo IFood diretamente aos Operadores Logísticos e estes remuneram os seus entregadores nos critérios acordados entre os Operadores Logísticos e seus entregadores, não tendo o IFood qualquer ingerência na forma, periodicidade e valores pagos pelos Operadores Logísticos”.
O motoboy Robson (nome fictício), de 30 anos, conta ter tido uma experiência ruim durante o ano que trabalhou em uma empresa de motoboys da zona sul de São Paulo. “Para mim, foi como estar registrado na CLT mas sem ter nenhum direito, nem salário. Era tudo controlado pelo gerente OL, que tinha o poder de me bloquear no app”, explica.
No OL, o trabalho começa às 10h30 e vai até meia-noite, período dividido em três turnos. Entre eles, há a previsão de um intervalo de 20 minutos para descanso. Segundo relatos ouvidos pela BBC News Brasil, normalmente os trabalhadores fazem dois turnos — um das 14h30 até 18h, seguido por outro das 18h à meia-noite, por exemplo.
Mas há outros que trabalham nos três horários, como conta Robson. “Eu tinha de trabalhar todos os dias, das 10h30 à meia-noite, sem negociação. E, se eu não trabalhasse ou chegasse atrasado, podia ser suspenso pelo meu gerente. Se eu recusasse uma corrida, também era suspenso. Se eu reclamasse de algo, podia ser bloqueado. No OL, você vive no clima de ameaça o tempo todo”, diz.
Áudios com ameaças de bloqueios no aplicativo, supostamente enviados por gerentes OL, têm circulado em grupos de entregadores no WhatsApp. Em um deles, um homem afirma que não aceitava que seu subordinados participassem de uma greve no início deste mês.
“A gente que é OL é diferenciado, outra qualidade de entregador. A gente não se envolve em nenhum tipo de manifestação. Se alguém estiver descontente com a plataforma, me procura na base que eu te mando para nuvem. Se você tiver com adesivo (de protesto) na bag, vou pedir para você tirar. Se estiver descontente, a gente resolve essa questão e você se vira na nuvem”
Em outro áudio obtido pela reportagem, um líder OL reclama que seus entregadores vazaram para outro grupo ameaças feitas por ele contra quem participasse da paralisação. “Quero saber quem fez isso comigo. Estou lidando com vocês aí, no dia a dia. Eu simplesmente falei que quem quiser aderir (à greve) não vai mais fazer parte da equipe, só isso”, afirmou.
Já em outro áudio, enviado por um entregador à reportagem, uma suposta gerente OL “demite” o trabalhador pelo WhatsApp pelo mesmo motivo. “Aí, João, qual é a sua? Você está contra nós ou com nós? De onde vem o seu salário, meu filho? Para mim você está fora”, diz.
Em entrevista à BBC News Brasil, o motoboy Robson afirma que foi excluído do aplicativo depois de fazer vídeos no WhatsApp convidando colegas para participar de uma manifestação no início da pandemia de covid-19. “O gerente viu os vídeos e simplesmente me excluiu, não teve conversa”, diz.
Expulso, Robson agora entrou em uma lista de espera para voltar à vida de entregador do IFood na modalidade “nuvem”, mas está há três meses esperando ser aceito pela plataforma novamente.
Já Iuri Veloso Santos, 27, conta ter sido excluído do sistema OL depois de recusar algumas corridas longas demais, no Rio. “Às vezes, eu recebia chamados de 5 km para ganhar R$ 6, de bicicleta. Percebi que valia mais a pena fazer entregas mais curtas, porque ganhava a mesma coisa. Nesta semana, meu gerente OL me mandou mensagem dizendo que estava me excluindo porque eu recusei corridas. Mas fiz muito mais corridas do que recusei. Mesmo assim, não teve conversa, ele só escreveu: ‘se você quiser trabalhar para você mesmo, melhor sair’.
O IFood afirma que “defende e apoia o direito à livre manifestação e (que) espera dos nossos parceiros o mesmo compromisso”. Segundo a empresa, esse posicionamento foi expresso a todos os operadores logísticos no dia da paralisação. A companhia diz, ainda, que possui um código de conduta e ética “a ser seguido por todos os seus parceiros, e violações podem levar ao rompimento do contrato.”
O movimento de entregadores promete fazer uma nova paralisação da categoria neste sábado (25).
Sem citar números, o IFood afirmou que os entregadores OL são minoria em sua massa de colaboradores.
Segundo pesquisadores do setor, o OL seria uma maneira de a empresa manter um número expressivo de entregadores nas ruas para atender a uma demanda por delivery que cresce a cada dia, principalmente nos últimos meses com o isolamento social.
“O entregador ‘nuvem’ pode desligar o aplicativo a hora que quiser. O do OL, não. Esse sistema serve para que o IFood consiga garantir, por meio do gerenciamento feito por ‘líderes de praça’, que a plataforma vai atender a demanda de entregas”, afirma Leo Vinicius Liberato, doutor em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador da área de segurança e saúde no trabalho.
Segundo ele, que tem realizado pesquisas na área, em momentos de chuva forte ou de paralisação, por exemplo, o número de entregadores disponíveis tende a cair. “A empresa terceirizada é uma forma de o IFood disciplinar o trabalhador, estipulando um horário que ele precisa cumprir todos os dias, de modo a garantir que haja sempre uma massa de pessoas nas ruas, algo que o aplicativo não consegue fazer por si só”, diz.
O IFood não é a única empresa do ramo a terceirizar parte de seus entregadores. A Loggi, que trabalha com entregas de escritórios e outros tipos de compras, também tem seu modelo de operador logístico, chamado “Leve”. Ela contrata pequenas empresas que passam a gerenciar uma frota própria de motoboys, organizando o delivery e fazendo pagamentos aos colaboradores.
A própria Loggi ajuda as pessoas a criarem uma terceirizada, dando consultoria por meio de reuniões agendadas em seu site. Na página, a empresa afirma ser possível se tornar um operador logístico “em poucos dias, investindo R$ 5 mil, com retorno financeiro em dois meses”.
Para Rodrigo Carelli, procurador do Ministério Público do Trabalho e professor do curso de direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o operador logístico é “mais um fator de precarização do trabalho nesse setor, e um modelo antigo antigo e tradicional em outras áreas também precárias, como a construção civil, pecuária e têxtil”.
O procurador, que se tornou uma das vozes mais críticas à chamada uberização, acredita que o sistema seja também uma maneira de “bagunçar” o jogo jurídico caso as grandes empresas enfrentem processos de reconhecimento de vínculo empregatício entre elas e os colaboradores.
“O operador logístico é um complicador e um obstáculo no processo judicial. As empresas de aplicativos podem alegar que não têm vínculo com os entregadores, porque elas são apenas intermediárias. Esse vínculo seria com as terceirizadas. Na minha visão, há elementos claros de vínculo com os dois”, diz.
Em decisões dos últimos anos, a Justiça do Trabalho normalmente não tem reconhecido vínculo empregatício entre trabalhadores de aplicativos e as empresas. Em janeiro, por exemplo, a Justiça negou uma ação civil pública que pedia essa vinculação com o IFood. Segundo a juíza Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar, essa nova relação de trabalho é “inovadora” por ser intermediada por tecnologia e se enquadra no “modo autônomo”.
Segundo o site jurídico Conjur, a magistrada escreveu na decisão: “Restou demonstrado que o trabalhador se coloca a disposição para trabalhar no dia que escolher trabalhar, iniciando e terminando a jornada no momento que decidir, escolhendo a entrega que quer fazer e escolhendo para qual aplicativo vai fazer, uma vez que pode se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos desejar”.
O IFood afirmou que o modelo “é totalmente transparente e está de acordo com as leis vigentes”.
Segundo Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp, o modelo OL é uma atualização do mercado de motoboys que existia antes da chegada dos aplicativos. “Até 2014, havia o chamado motoboy esporádico, que tinha uma remuneração fixa e menor, mas também recebia por cada serviço prestado. E havia o contratado, que era registrado pela CLT na terceirizada, mas atuava de maneira fixa em outra empresa. O que temos hoje com o OL é uma novidade: há a figura do trabalhador fixo, mas que não tem direitos nem nenhuma remuneração fixa garantida.”
Não é possível afirmar com certeza quanto ganha em média um entregador OL. Oficialmente, o IFood nunca afirmou que trabalhadores desse modelo recebem mais ou menos pedidos do que os atuam na “nuvem”.
Porém, alguns entregadores afirmam que no sistema terceirizado conseguem ter uma renda maior. Nesse sentido, há diversos vídeos no YouTube com relatos de aumento de renda. Um deles foi feito Jeff Fernandes, de 23 anos, que faz entregas no Recife e tem uma canal de vídeos onde conta sua rotina.
“Quando eu era ‘nuvem’, precisava trabalhar 12 ou 13 horas para ganhar R$ 80 por dia. Hoje, como entregador OL, ganho R$ 100 em pouco mais de sete horas diárias. Hoje consigo ganhar entre R$ 2.800 e R$ 3.100 por mês, bem mais do que eu recebia na ‘nuvem'”, diz.
Por outro lado, segundo Jeff, não dá para creditar seu aumento de renda apenas ao modelo que utiliza. Nessa conta, entra também sua pontuação alta no app — uma média de avaliações feitas por clientes, entre outros fatores. “Meu score é alto e isso tem influência nas corridas que eu recebo”, diz.
Já Hannah Jacomme Gouvêa, de 31 anos, conta nunca ter ganhado mais de R$ 840 por quinzena. Para ela, que atuou três meses como OL, o trabalho no modelo “não vale a pena, pois os gastos e riscos são muitos” — e o número de corridas depende muito de sua pontuação no app, diz. Por meio de mensagens de WhatsApp, a entregadora fez um desabafo sobre sua rotina estressante de trabalho:
“Somos nós que custeados tudo: pneu furado, gasolina, capacete, comida e até a mochila. Se quebra a alça da mochila ou o isopor, nós que pagamos. O app não tem filtro e manda a gente buscar compras dignas de quem tem carro, e eu não estou exagerando. Já fui buscar compra que tinha balde, vassoura, sabão em pó, galão grande de amaciante e cândida, frango, farinha de trigo, tudo isso para eu levar na bag. E, sim, me lembro dessa compra, porque foi um dos dias mais estressantes: fiquei no mercado mais de uma hora, esperando o app mandar outro entregador pra me ajudar. Depois desse tempo todo, o suporte disse que não tinha conseguido nenhum e que era para eu levar apenas o que pudesse. Chegando no cliente, tive que explicar toda essa ladainha. E isso para nada, porque ele ficou bravo comigo do mesmo jeito. E com certeza me avaliou mal no app, e isso faz o quê? Baixa a pontuação.”