Extremistas de direita passam de difamações a ameaças nas redes
Foto: Dan Addison/Universidade de Virginia
Há nove meses, o professor da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, David Nemer, de 35 anos, deixou o Brasil por não se sentir seguro. Em dezembro do ano passado, ele recebeu um e-mail com uma foto sua no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, onde estivera dias antes. O autor da mensagem, além de ter seguido o acadêmico naquele dia, escreveu que ele deveria “tomar cuidado” por onde andava. Nemer comprou a primeira passagem disponível para os EUA.
A experiência de Nemer mostra até onde podem chegar pessoas que usam perfis em redes sociais para ameaçar e agredir quem pensa diferente. Campanhas difamatórias e divulgação de notícias falsas podem atingir qualquer um, de qualquer campo político, e estão no centro do debate do projeto de lei das Fake News, em discussão na Câmara dos Deputados.
Nemer se tornou alvo de ataques virtuais e fake news três dias antes do segundo turno das eleições de 2018, quando publicou um artigo sobre o bolsonarismo nas redes sociais, fruto de sua pesquisa acadêmica. As mensagens diziam que o trabalho era financiado pelo filantropo húngaro-americano George Soros e que Nemer era contratado pela campanha de Fernando Haddad (PT) – ele nunca teve vínculos com nenhum dos dois.
“Os ataques voltavam, coincidentemente, toda vez que eu publicava algo novo”, lembra. Há cerca de um mês, após chamar atenção para o uso de uma nova rede social pela extrema-direita em uma entrevista, surgiram outras ameaças. Ele recebeu fotos de um fuzil, uma pistola e munição. “Parece que o esquerdista tem família no Brasil”, era a mensagem.
Hoje, por precaução, o professor coleta dados de cada interação que faz na internet, guarda imagens, armazena ameaças num servidor e monitora novos casos. “Consegui construir uma rede de apoio que me assessora juridicamente na universidade. Não me intimido, não vou parar”, disse.
Na época em que os ataques a Nemer começaram, a então candidata a deputada estadual de São Paulo Janaína Paschoal (PSL) também foi alvo de fake news. Um dos textos que mais viralizaram na internet dizia que ela havia participado de uma suposta reunião para forjar a facada contra Jair Bolsonaro durante a campanha.
Eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo, Janaína viu algumas das suas propostas serem distorcidas ou exageradas. Ela foi acusada de tentar impedir atendimento psicológico e social a menores de idade. Isso ocorreu após ela propor que tratamentos hormonais só sejam permitidos a partir dos 18 anos, e cirurgias de mudança de sexo apenas a partir dos 21.
“Os ataques são cruéis, sexistas. As ameaças são sempre de estupro e as ilações são sempre sexuais. Lembro de cartas indagando por qual razão eu não havia engravidado de algum figurão, já que queria tanto aparecer”, conta a deputada. Ela diz que as ameaças a perturbam mais do que eventuais notícias falsas. “Publicaram endereços e dados de todos os meus parentes, inclusive distantes.”
No mês passado, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, protocolou dez processos judiciais por uma notícia falsa contra ele e sua filha, Duda, de 14 anos. Eles foram acusados de receber R$ 790 mil da Lei Rouanet. Santa Cruz, a mulher e a filha de fato inscreveram um projeto de teatro infantil em um edital do governo. Mesmo após a aprovação, obtida de maneira regular, eles optaram por não captar o recurso e cancelaram a empreitada. Em um dos processos, um site foi condenado a pagar R$ 150 mil de indenização.
Os ataques começaram após ele assumir a presidência da OAB, em março de 2019. Circularam mentiras sobre as circunstâncias da morte de seu pai, que desapareceu após ser preso por agentes da repressão em 1974. “Você não passa de um comunista igual ao seu pai, se acha um semideus por andar de carro blindado. Não se esqueça que existe explosivo C-4”, dizia uma mensagem. O carro de Santa Cruz é realmente blindado e, com o indício de que possivelmente era monitorado, ele fez uma denúncia à Polícia Federal.
Há duas semanas, viralizaram imagens de bolsonaristas em frente ao condomínio onde mora o influenciador digital Felipe Neto, gritando ameaças ao microfone em um carro de som. O protesto era motivado por informações falsas que o associavam ao incentivo à pedofilia. Nas redes circularam imagens adulteradas, com frases que ele nunca havia escrito.
Neto diz que os ataques se intensificaram à medida que ganhou mais espaço na imprensa devido a suas posições políticas. Um manifesto assinado por 37 entidades do Terceiro Setor foi publicado em defesa dele. “O tamanho da força que eu recebi após esse evento serviu como um alerta para todas essas pessoas violentas e descontroladas: não vamos aceitar”, disse.
Nemer, Santa Cruz e Neto mantêm diálogo com parlamentares sobre o projeto de lei das Fake News que está em tramitação no Congresso. Os dois primeiros concordam que o texto precisa de ajustes antes de ser aprovado. A maior preocupação é garantir que a lei permita rastrear o financiamento de grandes redes de fake news, além de responsabilizar as empresas que mantêm as plataformas.
Neto considera o texto “vigilantista e punitivista, além de incrivelmente amador”, e defende sua rejeição. Os três criticam artigo que permitiria armazenar dados de autores das mensagens em massa por três meses. Há também dúvidas sobre se o Conselho de Transparência, criado por lei, não poderá ser usado como mecanismo de censura.
Janaína também é contra o atual texto em discussão no Congresso Nacional, e tem feito críticas tanto às CPIs que investigam fake news, em âmbito federal e também na Alesp, além do inquérito sobre o tema no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Alexandre de Morais. “Desinformação se enfrenta com mais informação, o livre trânsito das ideias”, ela diz.