Manaus é marcada a ferro pelo medo e pela dor

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Foto: HUGO BARRETO/METRÓPOLES

Nem mesmo a chuva do início da tarde de sexta-feira (15/1), em Manaus (AM), foi capaz de abafar os gritos desesperados de familiares que aguardam, nas portas de hospitais, notícias sobre os pacientes internados em decorrência de infecção pelo novo coronavírus.

Parentes e amigos dos doentes por Covid-19 em Manaus vivem um drama que parece não ter fim, com a escassez de oxigênio e o aumento de casos, que provocaram um verdadeiro colapso no sistema de saúde da capital.

Na quinta-feira (14/1), foram realizadas 254 hospitalizações devido à doença causada pelo SARS-CoV-2 na capital amazonense, segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM). Esse é o maior número registrado em um só dia, desde o início da pandemia do novo coronavírus.

Junta-se a isso o aumento diário de casos da doença e a alta da taxa de ocupação de leitos de unidade de terapia intensiva (UTI), o que faz com que ambulâncias sejam utilizadas como leitos improvisados nas portas de hospitais. Na quinta, em outro recorde: Manaus notificou 2.516 diagnósticos de Covid-19.

Para se ter dimensão da crise, ainda falta oxigênio para atendimento nos hospitais da cidade, mesmo com o reforço de aviões da Força Área Brasileira (FAB), que transportou 18 toneladas do gás na quinta e outros 5 cilindros na sexta-feira (15/1), e da imensa onda de solidariedade que tomou o país, comovido com o drama em Manaus. Artistas e cidadãos comuns se uniram para doar de cilindros de oxigênio a garrafas de água para as unidades de saúde da capital amazonense.

A dentista cirurgiã Leidimery Maia, de 34 anos, está com o pai, o autônomo Luiz Carlos, de 54, e o avô, o aposentado Manoel Carmo, de 72, internados, pelo menos desde o último dia 4, em dois hospitais da capital amazonense. Ambos sofrem com falta de ar.

Luiz deverá ser transportado a São Luís, no Maranhão – um dos estados que oferecerem ajuda para receber pacientes com falta de oxigênio.

No total, 235 pacientes, além de profissionais de saúde, serão levados a outras unidades da Federação, segundo a Secretaria de Saúde do Amazonas. Há voos programados de Manaus com destino a São Luís (MA), Teresina (PI), Natal (RN), João Pessoa (PB), Brasília (DF) e Goiânia (GO).

A situação de Manoel é mais preocupante. A idade avançada do paciente o deixa mais sensível ainda à doença. No Hospital 28 de Agosto, ele estava recebendo nível máximo de oxigênio, mas, na quinta-feira, o gás foi reduzido a um quinto do total, em uma tentativa dos médicos de moderar a situação. “Não tem condições de ele sair dessa sem ajuda.”

Além disso, o tratamento, segundo Leidimery, não tem sido dos melhores. “Nós o encontramos em uma situação terrível. Ele estava jogado em uma maca, todo mijado, sem comer, nem beber água. São tantos pacientes que estão ficando abandonados. É muita gente para pouco médico”, conta a dentista.

“Meu sentimento é de revolta, de impotência, porque a gente não pode fazer nada”, prossegue, ao interromper a entrevista por quase um minuto para enxugar as lágrimas.

Em frente à unidade de saúde onde o avô de Leidimery está internado, familiares aguardam apreensivos, ansiosos por qualquer notícia dos familiares hospitalizados.

No início da tarde de sexta-feira, pelo menos quatro ambulâncias foram usadas como UTIs, ante a superlotação das unidades de saúde. Os carros ficaram parados por horas em frente ao Hospital 28 de Agosto, enquanto familiares se escoravam na porta dos veículos, sob a chuva e um sentimento gritante.

“A nossa mãe estava em casa, pois não tinha local e agora viemos para cá, no hospital, mas vai morrer dentro da ambulância porque não tem outro lugar. Ela precisa de um médico urgentemente. Os hospitais não estão recebendo”, contou uma mulher, parente de uma das pessoas “internadas” na ambulância, ao segurar pacotes de fraldas em um braço e o celular no outro.

A revolta também toma conta da professora Raíssa Batista. O pai dela, o aposentado Afonso Barão Batista, de 73 anos, está internado desde domingo (10/1) em um hospital na capital do estado e, segundo a filha, chegou a ter delírios devido à falta de oxigênio.

“Meu pai chegou ao hospital em estado grave, mas ficaria estável se recebesse oxigênio. Ele teve delírios pela falta de oxigênio, tentou tirar a roupa, fugir…”, conta Raíssa.

Ela diz ter conseguido, na quinta-feira, um cilindro de 10 litros de oxigênio, mas o gás acabou na sexta-feira e ela não sabe se o hospital terá como complementar. Diabético, Afonso apresenta hipóxia silenciosa, quadro em que o paciente apresenta pouca oxigenação no sangue, mas não sente falta de ar.

“Estamos vivendo uma tragédia. O Brasil nunca chegou a diminuir o número de casos e nos empurraram para essa rotina, para arriscar nossa a vida. Está um caos”, protesta a professora, aumentando o tom de voz.

Do outro lado da labuta, uma médica infectologista que preferiu não se identificar, por medo de represália, diz passar por dias estressantes e exaustivos, com o agravo da pandemia em Manaus.

Ela atende pacientes, do “pobre ao rico”, em um dos hospitais de referências para o tratamento de Covid-19 da cidade e afirma que a situação tem ficado cada dia mais difícil.

“Nesta madrugada morreu um paciente meu justamente por falta de oxigênio, o que me deixou muito deprimida. Ele estava na casa dele, nem estava internado. Aí quando ele me chamou, ainda arranjou uma bala de oxigênio, mas era muito pequena e só durava três horas”, relata.

A médica conversou com o Metrópoles minutos antes de dar entrada em um novo turno de trabalho, às 22h (horário local) da sexta-feira. Questionada sobre o que a esperava no hospital, ela declarou: “Se ainda estiver sem oxigênio, é bem provável que perderemos mais vidas”.

O médico Raynison Monteiro, de 60 anos, funcionário do Hospital 28 de Agosto, relata que as cirurgias consideradas como “urgentes” na unidade foram suspensas, ante a falta de oxigênio para tratamento de pacientes na capital.

Esses procedimentos cirúrgicos, no entanto, deveriam ser realizados com a urgência que as situações requerem, uma vez que, se houver demora, as chances de morte aumentam exponencialmente. É o caso de quem perdeu algum membro do corpo, por exemplo.

Raynison conta que a orientação, no entanto, é realizar apenas as cirurgias consideradas “emergenciais” – quando o paciente corre risco extremo de morte e é ainda mais necessário, portanto, arriscar o procedimento, apesar da escassez do gás.

O profissional de saúde diz viver um sentimento de impotência, visto que, segundo ele, não há nada a fazer quando se falta oxigênio. “Isso é muito triste, porque ficamos sem poder fazer absolutamente nada quando falta oxigênio. Ficamos inúteis. Sem oxigênio, a pessoa vai morrer. Então, frustra a equipe toda”, lamenta o cirurgião.

Metrópoles  

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