Epidemiologista diz que incúria de Bolsonaro pode deixar país sem vacinas
Foto: Fotoarena / Agência O Globo
Carla Domingues esteve durante oito anos à frente das campanhas de vacinação do país. Experiente, a especialista conhece a estratégia de imunizar e a estrutura disponível no Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde.
Com todo o conhecimento adquirido, a médica epidemiologista está preocupada com os rumos que a vacinação contra a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, tem tomado no Brasil. Para Carla Domingues, podemos ficar sem imunizante e com dificuldades para organizar a proteção dos próximos públicos-alvo. Um dos exemplos é a dificuldade do governo em cadastrar as pessoas que receberão as doses nos próximos meses.
A especialista coordenou o PNI entre 2011 e 2019. Agora, dedica-se a ensinar a população temas relacionados à vacinação contra a Covid-19. Em entrevista ao Metrópoles, Carla ponderou sobre a campanha, os erros e a dificuldade do país em combater a pandemia. Ela critica, por exemplo, a falta de uma coordenação centralizada.
“Na realidade, estamos em desorganização total. Faltou planejamento, e cada estado ou município está fazendo uma ação diferenciada”, frisa.
Um dos impactos desse modo de trabalho é a possibilidade de interrupção da campanha. “Da forma que está acontecendo, o país corre o risco de ficar sem vacina para continuar a campanha de imunização”.
Como o Ministério da Saúde não definiu os principais grupos de maneira detalhada, a epidemiologista acredita que esse panorama causou “frustração na população”, tendo em vista que cada estado tem se organizado de formas diferentes. “Isso pode levar a um turismo de vacinação, ou seja, as pessoas irem para outros estados se imunizarem. Como será o controle?”, questiona.
Com a escassez de vacina – um problema mundial, mas acentuado no Brasil, devido à condução das negociações para compra do insumo –, o governo começou uma campanha sem ter todas as doses do imunizante, um fato inédito.
“Normalmente, o Ministério da Saúde iniciava suas campanhas tendo todas as doses necessárias ou a maior parte. Tínhamos um planejamento. Pela primeira vez, não há imunizantes suficientes para iniciar a vacinação, e não se tem clareza de quais grupos serão prioridade”, ressalta Carla.
Os questionamentos são muitos. “Como será esse controle? Teremos capacidade de aplicar duas doses? Como o registro de vacinados está efetivamente sendo feito? Vamos usar o sistema de registro do Ministério da Saúde, que não está funcionando, ou cada estado terá o próprio sistema? Como será consolidado o dado nacional?”, pondera.
Outro ponto questionado por Carla Domingues é a capacidade de o país aplicar corretamente as duas doses da vacina. A campanha optou por imunizar o maior número de pessoas com a primeira dose.
“A vacinação tem que ocorrer como a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] liberou. Não sabemos se as pessoas terão imunidade com apenas uma dose. Quando as vacinas tiveram o registro do uso emergencial, ficou clara a necessidade de monitorar, de acompanhar se as pessoas perderam a imunidade. Isso serve para planejar um reforço futuro. Não se tem estudo apontando eficácia com a aplicação de apenas uma dose”, frisa.
Um possível hiato na vacinação preocupa a epidemiologista. “Se a gente tem 6 milhões de doses, temos de aplicar 3 milhões e guardar 3 milhões para a segunda dose. Dessa forma, caso não se tenha vacina e a campanha pare, não há risco, porque a segunda dose estará garantida. Agora, vacinar 6 milhões de pessoas com uma dose e falhar [com a segunda dose]? Pode ser que elas estejam vacinadas e não tenham imunidade”, complementa.
O país se choca a cada dia com os relatos de pessoas que não fazem parte do grupo prioritário para vacinação contra a Covid-19, pelo menos neste momento, e estão furando a fila para se imunizarem. São médicos que não atuam no combate à pandemia, prefeitos, secretários estaduais, entre outros.
Carla repudia a atitude e aponta a falta de uma campanha de sensibilização sobre o assunto. “O comportamento do brasileiro é: farinha pouca, meu pirão primeiro. Temos que explicar por que essas pessoas do grupo prioritário foram escolhidas. Falar que a vacinação é para evitar complicações da doença e mortes. É essencial explicar que pessoas vacinadas de outros grupos trazem segurança para todo mundo”, salienta.
A epidemiologista aponta que os governos não estão fazendo nada para solucionar a questão. “O foco deve ser os médicos que estão lidando com a doença, os profissionais de laboratórios que fazem coletas de amostras diariamente. Faltou condução firme do governo federal”, afirma.
Um dos tropeços apontados pela especialista na condução da campanha é que o governo federal não se planejou para adquirir doses da vacina. Entrando na segunda semana de imunização, o Ministério da Saúde ainda patina na compra de doses.
“O Brasil corre o risco de ficar sem vacina, sem sombra de dúvidas. Acreditamos em uma única vacina. A Coronavac [produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac] só foi adquirida por pressão popular. A gente não abriu possibilidade de negociação com outro fornecedor”, critica.
Nesse cenário, tempo é palavra de ordem. Carla explica que a capacidade de o Brasil produzir imunizantes é a médio prazo, levando cerca de 12 a 18 meses. “Precisamos da vacina em seis meses”, pontua.
Ela prossegue: “Se eu tinha pouca vacina, por que distribuímos para o país inteiro? Deveríamos ter nos concentrado nos locais de acordo com perfil epidemiológico, ou seja, onde as pessoas estão adoecendo. Distribuímos como sempre foi feito e como se tivesse para todo mundo. Não dá para trabalhar como sempre se trabalhou. Tem que ter estratégia diferente. Chegar no prefeito e falar: ‘Você vai esperar um pouco’. Temos outras emergências”, sinaliza.
Apesar de a campanha ter começado com erros, Carla acredita que as dificuldades poderão ser superadas por causa do tamanho e da força do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas ela alerta que o Ministério da Saúde precisa reorganizar o processo de trabalho. E cita dificuldades em cadastrar as pessoas das próximas faixas de imunização.
“O governo teve problemas para cadastrar o médico que atua contra a Covid-19 e que sabemos onde ele está. Imagina, por exemplo, quando chegar a vez da pessoa com comorbidade, que eu não sei onde está? Se não fizermos esse cadastramento agora, teremos muita confusão”, avisa.
Mesmo com todas as críticas, a epidemiologista acredita que o processo pode ser corrigido.
“As coisas não estão organizadas. Poderíamos estar melhor. Estamos fazendo exatamente como sempre fizemos, mas a pandemia exige novas práticas. Como será o cadastro para as próximas etapas? Para o idoso, é só apresentar a identidade. E os outros grupos? Profissionais da educação e da segurança que serão vacinados, qual será o critério? Aqueles que estão aposentados terão prioridade também?”, questiona.
Carla acredita que a vacinação contra a Covid-19 deixará um legado importante para o país. Um dos desafios para a imunização é combater as fake news e o processo de descrédito, muitas vezes motivados pelo próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Nunca perguntamos que marca é a vacina, qual a eficácia, de onde ela veio. O objetivo da vacina é diminuir a gravidade das doenças. A da Covid-19 vai evitar a gravidade e o óbito. Isso é uma ação de saúde pública. As pessoas comparam as vacinas, mas estamos falando de estimativa. É um estudo amostral. Vamos saber efetivamente da sua eficácia quando vacinarmos milhões de pessoas. Ninguém pode escolher a vacina. A melhor é a que chegar ao braço do cidadão”, defende.
Ao finalizar, a especialista faz um alerta: “Entendo o desespero, a necessidade, mas a vacina não pode ser a bala de prata. Precisamos continuar usando máscara, fazendo distanciamento social e até mesmo lockdown. Não dá para achar que estamos resolvendo o problema da pandemia com a vacina”.
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