Bolsonaro e o deus trator

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Alan Santos/PR/Reprodução

Nas tiras da série “as cobras”, que Luis Fernando Verissimo desenhou dos anos 1970 até quase o final do século passado, havia um personagem que gostava de desafiar Deus, lançando blasfêmias ao céu. Deus nunca aparecia nos quadrinhos, mas as heresias da cobra costumavam ser respondidas com um raio fulminante. “Deus é um mito”…, dizia o ofídio nietzschiano no início de uma tirinha, para, depois de eletrocutado, concluir, no último quadrinho: “…e não aceita crítica”.

Lembrei-me das cobras porque Jair Bolsonaro – que alguns tontos chamam de “mito”– anda provocando os céus. Pegou a mania de afirmar que só Deus o tira da cadeira presidencial. Um ateu militante poderia dizer, ao contrário, que Bolsonaro é a prova definitiva da inexistência de Deus, pois até agora nenhum raio caiu sobre o Palácio do Planalto. A teologia, no entanto, é uma ciência elástica, e tudo cabe no mistério divino. Se Deus tinha seus desígnios até para os gafanhotos e as rãs do Egito, Seus projetos indevassáveis também podem acomodar o Sars-CoV-2 e Jair Bolsonaro.

Nas redes sociais, circula uma vasta iconografia kitsch em que Bolsonaro aparece acompanhado de Jesus. Uma imagem típica apresenta o presidente em seu gabinete, abraçado pela figura etérea do Filho enquanto assina algum decreto na cadeira da qual só pode ser arrancado pelo Pai. Mas a segurança que o presidente conquistou no cargo se deve não às forças celestes, mas ao vulgar toma-lá-dá-cá que Bolsonaro dizia rechaçar.

A bravata de Bolsonaro pode não ser comparável às impertinências da cobra, mas configura uma clara transgressão do segundo mandamento. Eu, pelo menos, não consigo imaginar forma mais escandalosa de invocar o Santo Nome em vão do que atribuir a Deus os milagres realizados pelo Centrão.

A última pesquisa DataFolha revela que 49% dos brasileiros aprovam o impeachment, contra 46% que o desaprovam, e que 58% consideram Bolsonaro incapaz para o exercício de seu cargo. A CPI está expondo o descaso do presidente com a vacinação e seu apego a tratamentos inúteis como a hidroxicloroquina. Mas o impeachment não sairá, pois a cadeira presidencial foi abençoado pelo milagre do “tratoraço”.

O trator é o deus ex machina de Bolsonaro.

Na tragédia grega, o deus ex machina era o ser divino que descia em cena para dar fim às tretas que os heróis mortais não conseguiam resolver por si próprios (Aristóteles reprovava esse recurso dramatúrgico pobre). O orçamento secreto revelado pela reportagem do Estadão veio igualmente pacificar as relações entre os mortais e os imorais, mas dispensou os deuses do Olimpo: a intercessão veio do subsolo daquela “velha política” que o atual governo dizia ter superado.

Nosso tosco Mito não caberia no meio dos mitos que Ésquilo, Sófocles e Eurípides levaram ao teatro de Atenas. O herói da tragédia grega cai em desgraça por sua húbris – o momento de orgulho desmedido, em que ele perde a noção de seus limites humanos. Na Oresteia, Ésquilo representou visualmente a húbris no tapete púrpura que Clitemenestra estende, em Argos, para o marido, Agamémnon, quando este herói retorna vitorioso da Guerra de Troca.

Agamémnon hesita em pisar no tapete, pois os tecidos de púrpura são “destinados aos deuses”. Clitemnestra desdenha da modéstia (que ela sabe falsa) do marido: “A nossa casa, ó Rei, está, pela graça dos deuses, em condições de dispor destas riquezas e é uma casa que não sabe ser pobre”. Seduzido pela lábia da mulher, o grande guerreiro marcha sobre o tapete até seu palácio. Será sua perdição: Clitemnestra, em conluio com o amante Egisto, já tramava o assassinato de Agamémnon.

Essa cena só pode ser adaptada à realidade brasileira pela via da chanchada. A picanha de R$ 1.799,00 reais o quilo que Bolsonaro abocanhou em um churrasco recente no Alvorada tomaria o lugar do tecido púrpura em que Agamémnon pisou. Egisto seria Renan Calheiros, assassinando a reputação do presidente na CPI, e Orestes – o filho que na mitologia grega vinga a morte de Agamémnon – seria Carlos Bolsonaro, justiceiro do Twitter.

Na linguagem cotidiana, podemos até dizer que o governo Bolsonaro é uma tragédia. Mas Bolsonaro, homem sem conquistas e sem envergadura, não será jamais um herói trágico. A guerra cultural em que Bolsonaro, seus generais, ministros e filhos se engajaram – essa guerra farsesca dispensa aedos e rapsodos: para cantá-la, bastam os criadores de memes e fake news empregados nos “gabinetes do ódio” em Brasília.

Não se deve confundir a hubris grega com a soberba que o cristianismo condena como pecado capital. Hubris exige grandeza; soberba é coisa de fariseus – esses homens mesquinhos, que cultivam ideias miúdas e sentimentos torpes, mas gostam muito de falar em Deus.

Época