Site colaborativo lista lugares que homenageiam ditadura
Foto: Reprodução/ Google
Passados 36 anos do fim da ditadura militar, em 1985, o Brasil contabiliza ao menos 197 lugares públicos que carregam nomes de generais protagonistas do golpe de 1964 e da manutenção de um regime totalitário responsável por milhares de prisões arbitrárias e sessões de tortura, além da morte e do desaparecimento de mais de 400 pessoas.
Ruas, praças, pontes e avenidas que homenageiam figuras centrais do período da história recente do país marcado por repressão política e violações de direitos humanos começaram a ser mapeadas pelo projeto colaborativo Ditamapa.
Criado pelos artistas Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, e Andrey Koens, programador e pesquisador do Grupo de Arte e Inteligência Artificial da FAU/Inova-USP, o Ditamapa quer apontar para “fantasmas do autoritarismo” espalhados pelo território nacional até os dias de hoje.
“O Ditamapa surgiu da inquietação frente às recorrentes manifestações públicas pela volta da ditadura e pela intervenção militar no Brasil, além de homenagens a torturadores e ameaças de retomada do AI-5”, explica Beiguelman.
Esse tipo de clamor ganhou visibilidade a partir de 2014, com os protestos que pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em cuja sessão, já em 2016, o então deputado Jair Bolsonaro exaltou o coronel Brilhante Ustra, o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador. Evocações do tipo orbitam hoje a presidência de Jair Bolsonaro.
Beiguelman conta que decidiu procurar “as marcas dessa presença a partir dos lugares da memória mais difusos e cotidianos: as ruas com nomes dos cinco generais que presidiram o Brasil entre 1964 e 1985”. São eles: Humberto Castelo Branco, Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
O resultado, diz, é revelador de como a “ditadura civil-militar de 1964 foi naturalizada entre nós”.
A distribuição e permanência desses nomes ao longo do território nacional, avalia ela, revelam como se articulam as políticas do esquecimento. “É pelo memoricídio e pela construção de um outro território físico e simbólico, em que se forja desde a ideia de uma ‘ditabranda’ até a ilusão de que este foi um período positivo e melhor.”
O projeto inclui imagens obtidas por meio do Google Street View de quase todas as ruas, alamedas e viadutos batizados com os generais da ditadura. “Descobrir as imagens foi algo perturbador porque elas ilustram o nosso desastre social”, diz Beiguelman. “Simbolicamente, são reveladoras da falácia de prosperidade do Milagre Brasileiro enquanto, na verdade, aumentava a desigualdade, a pobreza e a miséria. Foi-se o Milagre, ficaram os escombros.”
Na próxima etapa, o Ditamapa deve expandir sua base de dados para incorporar outros espaços, como escolas, e outros agentes do Estado ligados às violações de direitos humanos daquele período, entre militares, torturadores e médicos legistas que assinaram laudos ocultando evidências de tortura.
“Acho excelente que esse mapeamento esteja sendo feito. Trata-se de recomendação da Comissão Nacional da Verdade [CNV]”, explica o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador da CNV em 2013 e que hoje integra a Comissão Arns.
“Nenhuma autoridade do regime militar de 1964 que prendeu arbitrariamente, sequestrou, torturou e executou merece ser homenageado em vias públicas ou monumentos. É um escárnio continuar a conviver na democracia com esses rastros do arbítrio”, critica Pinheiro, ex-ministro de Direitos Humanos durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), lançado em 2014, recomenda a promoção da “alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações”.
Tímido no Brasil, esse debate tem sido intenso em várias partes do mundo e pegou fogo no ano passado na esteira dos protestos antirracistas motivados pelo assassinato de George Floyd, em maio de 2020, nos EUA. Foi quando estátuas de traficantes de escravos e de colonizadores foram depredadas ou derrubadas nos EUA e Europa.
Para a historiadora Heloísa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), não combina com a democracia homenagear ditador ou torturador, e nome de rua, assim como monumento, tem sentido de homenagem.
“Eu entendo que o movimento negro jogue no rio uma estátua de um traficante de escravos, mas o que vamos fazer com isso depois?”, questiona.
“Talvez o principal erro que tenhamos cometido no país foi o de apostar muito nas instituições democráticas e em práticas democráticas como o voto, mas não na promoção de uma cultura democrática”, sugere a coautora de “Brasil, Uma Biografia” (Companhia das Letras), escrito com a antropóloga Lilia Schwarcz.
“Hoje, temos de fazer essa discussão, mas sem apagar a história, que é o nosso metro, é a métrica para avaliarmos o brasileiro de hoje a partir do brasileiro que já fomos”, afirma Starling.
“Se for para mudar o nome do espaço público, é preciso envolver as pessoas na discussão sobre por que um ditador não pode ser nome de rua. E isso coloca um tijolo de fundação dos valores democráticos da sociedade”, diz. “Aí não estamos apagando a história mas usando a rua como um suporte para ela.”
Para Beiguelman, renomear espaços configura uma política de reparação, cujo exemplo seria a Alemanha do pós-guerra, que renomeou todas as ruas antes batizadas de Adolf Hitler.
“Tirando os nomes mais expressivos, o resto tende a passar batido”, avalia Patrícia Carvalhinhos, professora de toponímia na USP. Toponímia é o estudo de nomes de lugares e suas alterações linguísticas, semânticas, geográficas e políticas.
Ela cita dois casos de São Paulo. O do elevado Costa e Silva, que foi rebatizado de elevado João Goulart, mas continua a ser chamado do mesmo jeito: Minhocão. E o da pequena rua Dr. Sérgio Fleury, no bairro da Vila Leopoldina (zona oeste). A proposta de mudança do nome do delegado que serviu no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e esteve envolvido em sessões de tortura e em execuções durante a ditadura enfrentou a resistência dos moradores, que preferiram mantê-lo.
“Mudar nomes gera um ônus não só de memória mas também um transtorno do ponto de vista prático, já que implica na mudança de uma série de cadastros”, avalia.
“Meu posicionamento é que não precisa mudar, mas, sim, usar esses espaços para educar: colocar placas explicativas e criar roteiros escolares”, sugere ela, contrariamente às recomendações oficiais. “Se formos apagar tudo o que for negativo da nossa história, ainda assim não vamos estar passando uma borracha no que aconteceu. É melhor usar isso para conscientizar as pessoas.”
O procurador da República Antonio Cabral integra um grupo de Justiça de Transição do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro e ajuizou ação civil pública em 2014 que pede a supressão do nome oficial da ponte Rio-Niterói, batizada nos anos 1970 de presidente Costa e Silva. Segundo ele, a ponte é um símbolo de memória coletiva e nomeá-la em homenagem ao general configura propaganda do regime militar.
“Hoje ainda vemos muitas demonstrações de enaltecimento de criminosos, como torturadores e homicidas, o que em parte decorre da inabilidade de nossa sociedade de levar adiante uma verdadeira justiça de transição, aquela que resgata fatos do passado de maneira a criar uma cultura de respeito aos direitos humanos e de não-reiteração das violações do Estado autoritário-ditatorial.”