CPI vai provar que governo preteriu vacina em prol da cloroquina

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Foto: Mateus Bonomi/Estadão Conteúdo

Documentos do Itamaraty que chegaram à CPI da Covid sob sigilo mostram bastidores da corrida feita pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia, em 2020, para obter no exterior comprimidos e insumos de cloroquina e hidroxicloroquina — remédios sem eficácia no tratamento da covid-19.

O Executivo federal se empenhou em vencer burocracias, estabeleceu uma série de comunicações informais, lidou com tentativa de barganha comercial e negociou com a Índia em benefício de interesses de empresas privadas.

O material, cujo sigilo foi retirado depois por decisão da Comissão Parlamentar de Inquérito, indica que a empreitada foi mais intensa no período entre abril e setembro do ano passado. O governo brasileiro enxergava, na ocasião, acelerada disputa no mercado global por estoques de cloroquina e hidroxicloroquina.

No mesmo período, a OMS (Organização Mundial da Saúde) retirava recomendação de uso de medicamentos à base de cloroquina com fundamentação em estudos científicos avalizados pela comunidade internacional. Apesar da comprovação de ineficácia, Bolsonaro e aliados continuaram a pregar o incentivo à prescrição desses fármacos e o fazem até hoje.

Guiados pelas diretrizes da cúpula do Palácio do Planalto, a diplomacia brasileira na Índia tentou superar restrições à exportação de medicamentos e insumos. Sob justificativa de risco para a demanda interna indiana, um ato proibiu em março de 2020 a venda ao exterior de hidroxicloroquina e itens básicos para fabricação do remédio — a proibição acabou sendo revogada em junho daquele ano.

Enquanto isso, as empresas brasileiras Apsen e EMS aguardavam liberação para a importação de toneladas de insumos destinados à fabricação de hidroxicloroquina em território nacional.

Após intensas negociações lideradas pelo Itamaraty em favor das farmacêuticas incluindo carta do então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ao contraparte indiano buscando liberação para carga à EMS, e de telefonema do próprio presidente Bolsonaro ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, algumas concessões foram feitas.

Um aval de 26 de maio de 2020 consta em telegrama enviado ao Ministério das Relações Exteriores pelo embaixador na Índia, André Aranha Corrêa do Lago, marcado como “urgentíssimo”.

Telegrama CPI da Covid 2 - Reprodução - Reprodução

No último dia 10, reportagem do jornal “O Globo” relatou que, na conversa com Modi, Bolsonaro citou nominalmente as duas empresas brasileiras envolvidas em negócios com a Índia. Ambas são comandadas por executivos que têm vínculos ou já tiveram relações com o bolsonarismo.

O telegrama da embaixada em Nova Déli mostra que as autoridades locais avalizaram a exportação de cerca de 2,4 toneladas de insumos de hidroxicloroquina — fora outras duas liberações anteriores no início de abril e maio. Por outro lado, foi emitido um alerta: dificilmente novas solicitações seriam aprovadas naquele momento.

O motivo era comercial: valendo-se do grande interesse expresso por Bolsonaro e por empresas brasileiras (outras três encomendas já estavam engatilhadas), a Índia queria emplacar uma venda ao Brasil de 5 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina.

De acordo com o telegrama, novos pleitos dificilmente seriam “concedidos sem avanço nas providências” dessa compra pelo Brasil.

Diz ainda trecho do documento assinado pelo embaixador Corrêa do Lago:

“Muito agradeceria, ao mesmo tempo, habilitar-me a prestar informações concretas sobre o andamento das providências para a compra dos ‘tablets’ da Índia pelo Ministério da Saúde, uma vez que o tema interfere com a obtenção das novas autorizações a serem aprovadas pelo governo indiano, em processo que, como já exposto, é bastante discricionário.”

Em 13 de abril de 2020, dois dias depois da oferta, o Itamaraty havia avisado o Ministério da Saúde sobre a proposta e pediu um posicionamento. O Itamaraty relata que, naquele momento, a Índia insistiu em contatos informais para tratar do assunto, embora tivesse solicitado resposta formal. Houve uma manifestação de interesse em 17 de abril, mas as negociações se arrastaram por meses.

Telegrama CPI da Covid 1 - Reprodução - Reprodução

Em 8 de junho, o Itamaraty enviou ao Ministério da Saúde um ofício cobrando um posicionamento. “Consulto se permanece o interesse, manifestado anteriormente, na aquisição de 5 milhões de drágeas de HCQ, oferecidos pelo governo indiano em 11 de abril”, segundo o documento.

Em resposta em 2 de outubro, um assessor para assuntos internacionais do então ministro Eduardo Pazuello disse que a pasta entendia “não ser necessário proceder com a aquisição do medicamento”.

Em despacho de setembro de 2020, o Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos, órgão do Ministério da Saúde, confirma que as negociações com a Índia contaram com “articulações realizadas pela Casa Civil” —isto é, pasta que integra a estrutura da cúpula do Palácio do Planalto— junto ao governo indiano.

Coube à Casa Civil proceder com comunicações destinadas ao Ministério da Saúde em um esforço diplomático para viabilizar “as ações de exportação ao Brasil, em favor de empresas produtoras do medicamento hidroxicloroquina para atender ao mercado interno”.

O embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, comemorou a doação de 2 milhões de comprimidos de sulfato de hidroxicloroquina pelos EUA no final de maio de 2020 dizendo “habemus hidroxicloroquinam!” em email a um colega.

Ou seja, “temos hidroxicloroquina”, semelhante à expressão latina “habemus papam”, utilizada para anunciar a eleição do papa.

Trecho de mensagem do embaixador Nestor Forster, mostra que ele comemorou a liberação de 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina dos EUA ao Brasil  - Reprodução - Reprodução

Emails encaminhados à CPI também revelam que o afã pelo remédio pôs o governo em uma série de tratativas informais neste caso.

Uma semana antes da chegada da hidroxicloroquina doada ao Brasil, a OMS suspendeu os testes com o remédio em pacientes com covid-19 por questões de segurança e já havia se colocado contra o uso amplo dele.

Em mensagem ao diretor da ABC (Agência Brasileira de Cooperação), embaixador Ruy Carlos Pereira, a chefe substituta da assessoria do Ministério da Saúde, Fernanda Matsumoto, afirma que a área foi “informalmente comunicada” acerca da chegada do lote no aeroporto de Guarulhos e pede um relato referente à doação.

Ela pergunta se a própria empresa doadora do medicamento iria nacionalizar a carga e manda a relação dos documentos exigidos pela pasta para que a doação pudesse ser reconhecida.

Em resposta, entre outros pontos, Pereira diz que a ABC recebeu a indicação informal do ministério para que o assunto fosse tratado principalmente com Alessandro Glauco dos Anjos de Vasconcelos, da Secretaria Executiva da pasta. Ele não cita de quem teria partido esse direcionamento nem o motivo.

Embora tenha havido contatos formais entre a ABC, a Embaixada do Brasil em Washington e integrantes do Ministério da Saúde, há mais relatos de tratativas sem registros oficiais.

A comunicação dos dados da chegada da hidroxicloroquina, como data, horário e voo, foram passadas informalmente pela embaixada brasileira na capital americana à ABC, que, por sua vez, também transmitiu essas informações de maneira informal a Alessandro Vasconcelos.

O email do embaixador relata que a ABC também avisou, informalmente, à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre a iminente chegada da doação com o “pedido de dar atenção ao desembaraço sanitário” da carga.

Fora isso, Pereira afirma que a ABC mantinha contatos informais com a Embaixada dos EUA em Brasília com o objetivo de agilizar a documentação necessária para a nacionalização da doação.

Pereira busca justificar a Matsumoto que parte das informações vinha sendo processada informalmente devido ao regime de teletrabalho da administração pública e ao fim de semana —a doação chegou ao Brasil num domingo.

O UOL procurou o Itamaraty e o Ministério da Saúde. Se houver manifestação das pastas, este texto será atualizado.

Uol