CPI investiga corrupção na Saúde fluminense
Foto: MPRJ/Divulgação
A CPI da Pandemia prevê para hoje a quebra dos sigilos financeiro, fiscal e de comunicações de sete organizações privadas, três institutos e seis hospitais federais instalados no Rio.
A investigação lança luz sobre um dos maiores segredos financeiros da praça carioca — o destino de cerca de R$ 5 bilhões anualmente despejados pelo Tesouro nessas instituições de saúde pública. Há indícios de má gestão e, também, de corrupção nesse complexo hospitalar federal.
As organizações privadas no alvo da CPI são: Instituto Unir Saúde; Viva Rio; Associação Filantrópica Nova Esperança; Associação Mahatma Gandhi; Instituto dos Lagos Rio; Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas); e Instituto Diva Alves do Brasil (Idab).
Elas atendem seis hospitais (Andaraí, Bonsucesso, Cardoso Fontes, Ipanema, Lagoa e Servidores) e três centros especializados (Câncer, Cardiologia e Traumatologia). São administrados pelo Ministério da Saúde e compõem um legado do tempo em que a cidade foi capital do país.
A rede hospitalar federal no Rio possui 1.600 leitos, mas mantém um terço fechado há anos. Isso ocorre num Estado onde já é restrita a capacidade de internação hospitalar (a média fluminense é de 2,04 leitos por grupo de mil habitantes, abaixo da média nacional que é de 2,13 leitos).
Eles concentram 22% dos leitos disponíveis na capital fluminense e, naturalmente, deveriam ser relevantes em serviços de saúde aos 12 milhões de habitantes da região metropolitana do Rio, sobretudo em meio a uma pandemia. Não é o que acontece.
Mesmo na aflição pandêmica, com média de 12 mil novos doentes e 600 mortes por semana, os hospitais federais foram mantidos à margem da assistência na emergência sanitária, com um de cada três leitos fechados.
Ano passado, a Justiça Federal chegou a determinar o engajamento da rede federal no socorro às vítimas da Covid-19 no Rio. Não adiantou. Numa audiência, a juíza Carmen Silvia Lima Arruda se mostrou perplexa com o caso do Hospital de Bonsucesso: “Sequer foi realizada uma compra de teste de Covid.”
O país vivia a primeira onda de Covid-19. Na crise, o governo do Rio se propôs assumir a administração e os recursos federais desse complexo hospitalar. Não aconteceu, por causa da briga política entre Jair Bolsonaro e o então governador Wilson Witzel.
Duas semanas atrás, Witzel incitou senadores a investigar “porque esses leitos estão fechados e o dinheiro continua indo para lá”, para identificar “quem é o beneficiado pelo dinheiro que está sendo desviado”.
Acrescentou: “Os hospitais federais [no Rio] são intocáveis. Ninguém mexe ali. Eles têm um dono, e esta CPI pode descobrir quem é o dono daqueles hospitais federais.”
A CPI vai precisar distinguir entre o problema real e a briga política paroquial entre Witzel e Bolsonaro, que influiu na deposição do ex-governador, por impeachment.
Um dos enigmas da rede hospitalar federal é o seu alto custo operacional, em média oito vezes maior do que nos hospitais municipais do Rio (Lourenço Jorge), de Nova Iguaçu (Hospital Geral) e de Duque de Caxias (Moacyr do Carmo).
Antes da pandemia, já consumia um volume de dinheiro correspondente a 60% do orçamento de Saúde da cidade do Rio, pelos cálculos do Tribunal de Contas Municipal. Visto por outro ângulo, gastava o equivalente à despesa total do governo estadual com 60 hospitais (com 1.050 leitos de UTI) e serviços adicionais, como vigilância epidemiológica.
A rarefeita transparência na gestão há muito tempo ajuda a reforçar a percepção de anarquia gerencial, realçada pelo loteamento político também, pelos vínculos de grupos partidários com o crime organizado, no caso milícias formadas por policiais cariocas.
Alguns ministros da Saúde tentaram resolver o problema. Fracassaram. Outros nem tentaram.
Em meados de 2015, o ministro Arthur Chioro foi ao Rio e se reuniu com 11 prefeitos, secretários e o governador Luiz Fernando Pezão. Chioro repetiu as promessas que Dilma Rousseff fazia desde 2011 de mudanças na política nacional hospitalar.
Calou-se diante das críticas das autoridades. Torceu o nariz quando uma assessora local do ministério resumiu a crise da Saúde no Rio. De volta a Brasília, o ministro tomou uma decisão revolucionária: demitiu a assessora.
No início do governo Bolsonaro, o então chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, chegou a anunciar uma devassa na rede federal no Rio. Destacou o caso da influência de milícias no Hospital de Bonsucesso: ”Chega ao ponto de as pessoas que precisam de tratamento terem de pegar senha com milicianos, que determinam quem vai ser atendido ou operado.”
Bebianno se reuniu com dirigentes do hospital. “A Presidência da República” — disse — está diretamente interessada no assunto. Nós não vamos arredar o pé do Hospital do Bonsucesso, e nós vamos fazer o que tem que ser feito. Eu quero ver quem vai ter peito de peitar a Presidência da República” — desafiou, conforme a gravação da reunião (clique para assistir).
Prosseguiu: “Se tiver que haver confronto, sangue na camisa, como disseram lá [no hospital, a uma equipe de Bolsonaro durante a campanha eleitoral], ameaçando as pessoas que estiveram lá: ‘Ó, tome cuidado para não sair daqui com sangue na camisa, aqui é uma região muito perigosa’. Isso foi dito lá. Então, eu pago para ver (…) Essa conversinha fiada, de cafajeste do Rio de Janeiro, não vai prosperar conosco, nós não vamos nos intimidar.”
Bebianno ficou oito semanas no governo, acabou demitido por Bolsonaro. Em maio de 2019, houve uma reunião no Ministério da Saúde para decidir mudanças nas administrações dos hospitais federais no Rio. Entre os participantes estavam Marcelo Lamberti, chefe do Departamento de Gestão Hospitalar do Rio, e Flavio Bolsonaro, senador do Partido Patriota.
O filho do presidente influiu em nomeações nos hospitais federais. Chegou a discutir indicações em redes sociais. Num caso, desclassificou um funcionário em Bonsucesso, com 46 anos de carreira: “Não é um bom sinal”— escreveu — observando que, se consultado “diria para não nomeá-lo”.
A Polícia Civil do Rio reuniu evidências da presença de milícias cariocas em unidades da rede hospitalar federal. Um dos casos é o da participação de grupo paramilitar da Zona Oeste da cidade, conhecido como Liga da Justiça, em negócios no Hospital de Bonsucesso.
O ex-governador Witzel conhece detalhes. Prometeu, publicamente, revelá-los à CPI da Pandemia. E pediu aos senadores que essa conversa fosse secreta.