Almirante é o Pazuello da crise energética

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Foto: Igo Estrela / Estadão

Para um militar ocupar uma função civil nos Estados Unidos, ele precisa estar há sete anos longe do serviço ativo ou receber uma autorização especial do Senado. A democracia americana vai completar 250 anos. Suas instituições formam generais como Mark Milley. Enquanto no Brasil militares acreditam nos efeitos da cloroquina, Milley compareceu ao Congresso na semana passada e deu uma aula à extrema-direita trumpista sobre como um oficial deve se comportar. Questionado sobre o estudo da teoria crítica da raça pelos militares americanos, respondeu: “Eu li Mao Tsé-Tung. Eu li Karl Marx. Eu li Lenin. Isso não me faz um comunista. Então, o que há de errado com o conhecimento, em ter algum entendimento contextualizado sobre o país que devemos defender?”

Milley prestava contas ao Congresso da educação na caserna. Era confrontado por parlamentares, ainda que alguns deles fossem extremistas adeptos do expurgo de livros e ideias. Apesar do respeito pelos militares, não passaria pela cabeça dos presentes no Capitólio transformá-los em senhores do governo, em secretários da Saúde ou da Energia. Todas as tentativas de Trump de envolver as Forças em suas confusões acabaram em fracasso. Que Bolsonaro segue o trumpismo não é segredo algum. Ele já o anunciava em 2017. A única dúvida que a oposição ainda tem é, se na hora adversa, o presidente terá diante de si um general Mark Milley.

Deposita-se a esperança da democracia nos generais. Enquanto isso, o capitão militariza a Esplanada. Mas essa política começou antes. Veio por um caminho lento gradual e seguro. A saída dos quartéis foi um processo que se iniciou em 2017, quando, pela primeira vez desde a criação do Ministério da Defesa, o governo baixou um decreto (9.088/2017) para incluir entre os cargos de natureza militar aqueles exercidos nos tribunais superiores – Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça – e na Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

A boiada se ampliou no começo do governo de Jair Bolsonaro, quando o decreto 10.013 acrescentou àquela lista dos cargos os do gabinete do ministro da Defesa e os do gabinete do secretário-geral do Ministério da Defesa. Agora, no dia 22 de junho, o capitão, que já conta com mais de 6 mil militares da ativa na Esplanada para assessorá-lo, resolveu acrescentar mais 12 lugares onde o trabalho no governo será considerado de natureza militar.

Trata-se do Decreto Pazuello, com o qual Bolsonaro demonstra considerar as Forças Armadas seu verdadeiro partido, pois é delas que extrai parte considerável dos quadros para governar. A nova norma acrescenta à lista a Advocacia Geral da União e estabelece funções específicas para a Aeronáutica e a Marinha. Esta foi agraciada com os cargos no Ministério de Minas e Energia, na Caixa de Construções de Casas para o Pessoal da Marinha e em quatro empresas estatais: a Empresa Gerencial de Projetos Navais, a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A, a Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A e as Indústrias Nucleares do Brasil S.A.

Com isso, conclui-se que para Bolsonaro não é a função que tem uma natureza civil ou militar, mas quem a ocupa é que confere à função essa característica. Portanto, se a pasta das Minas e Energia comandada pelo almirante Bento Albuquerque, torna-se um ministério ocupado por militares, suas funções passam castrenses. Especialistas em relações civis-militares criticaram a medida. Dizem que sua lógica é da intervenção. Degrada-se o servidor público, transformando-o em população hostil de um terreno conquistado.

E, assim, centenas de funções que deveriam ser preenchidas por funcionários de carreira agora estão à disposição da intervenção de novos tenentes. Nenhum deles precisará voltar à Força dois anos depois de nomeado para o cargo, como determina a regra para as funções civis. Todos ficarão longe da atividade fim: a Defesa Nacional. Os nomeados desfrutarão de contatos preciosos, vantagens salariais e do estudo de licitações e contratos. E vão contribuir para enfraquecer a burocracia e o corpo técnico das empresas.

Afastam-se dos quartéis profissionais treinados para outros fins, que podem se revelar despreparados para a nova tarefa, a exemplo do que se observou na passagem da turma das Forças Especiais pelo Ministério da Saúde. Foi o talento de Bolsonaro que revelou o de Eduardo Pazuello, um oficial que mandou um recruta negro puxar uma carroça no lugar de um cavalo. Agora, depois da Saúde, outro ministério militarizado ameaça se transformar no novo pesadelo dos brasileiros: o de Minas e Energia, do almirante Bento.

Bento é dessas pessoas destinadas a enfrentar desafios. Pode-se dizer que o apagão que escureceu o Amapá em 2020 por mais de 20 dias serviu para mostrar ao ministro o efeito catastrófico que a incompetência e o descaso podem ter na economia e nas vidas quando as luzes se apagam. Seu ministério nega ter entregado aos céus o destino dos brasileiros. O fato é que a chuva não veio, e o almirante em terra seca não pode fazer grande coisa. Depois do general da vacina, o governo corre o risco de ter o almirante da energia.

Fruto da militarização da Esplanada, essa presença de militares contamina com a política os quartéis – inclusive, com a queda da aprovação das Forças Armadas, acompanhando a crescente impopularidade de Bolsonaro. O general Francisco Mamede de Brito Filho escreveu sobre o Decreto Pazuello: “Mais uma atitude mal-intencionada de ampliar a politização das Forças Armadas. Enquanto isso, a Câmara dos Deputados, de onde deveria partir a iniciativa de corrigir a anomalia preexistente, permanece assistindo, de braços cruzados, com estranha cumplicidade”.

Há quem pense que o decreto seria só mais uma medida que visa a assegurar a Bolsonaro o seu “tapetão”, seu golpe contra as instituições, em 2022. Sob a desculpa de defendê-las, o presidente quer impor sua vontade à Nação, uma vontade que desconhece ser a liberdade um fenômeno político que não se realiza no indivíduo. Nada é possível na sociedade sem a união das diversas vontades para se obter o bem comum. Fora disso, resta o arbítrio de quem pensa poder consertar tudo na marra, de quem imagina encarnar a vontade divina. Bolsonaro vai às Academias Militares. Tenta galvanizar os jovens cadetes falando dele, de Deus e da Pátria.

É do jornalista Michael Bender, do Wall Street Journal, a melhor imagem do que uma democracia pode esperar de seus militares. Ele descreve no livro Frankly, We Did Win This Election: The Inside Story of How Trump Lost o comportamento do general Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, durante a crise do último ano do governo Trump. “Arrebente suas cabeças. Apenas atire neles!”, pedia o presidente ao general nas reuniões na Casa Branca, durante os protestos antirracistas que sacudiam os EUA. Milley se recusou. Trump redarguiu: “Bem, atire então nas pernas ou, talvez, nos pés. Mas seja duro com eles”.

Quando sugeriram ao presidente que usasse a Lei de Insurreição para empregar as Forças Armadas contra os manifestantes, Milley disse que os protestos contra a morte de George Floyd eram um problema político e não militar. Afirmou que as reservas da Guarda Nacional eram suficientes para lidar com a situação. O general apontou então para o retrato de Abraham Lincoln na Casa Branca e disse: “Aquele cara enfrentou uma insurreição. O que nós temos, senhor presidente, é um protesto”.

Os déspotas não são os únicos a ver subversão onde há manifestação. Ou fraude quando derrotados nas urnas. Os espertalhões fazem o mesmo. Esbravejam contra a democracia, pois querem defender suas boquinhas, seus parentes e amigos. Não é preciso lhes mostrar o quadro de Lincoln. Eles não temem pinturas. Só a cadeia. Diante das crises, Bolsonaro resolveu sempre aprofundá-las. O que muitos ainda parecem não entender no Brasil é que para se ter um general como o chefe do Estado-Maior americano, é preciso antes contar com centenas de aspirantes, tenentes e capitães Milley nas fileiras de suas Forças Armadas.

Estadão

 

 

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