Bolsonarismo faz Brasil chegar combalido a Cannes
Foto: Valery Hache
Se Spike Lee estampa o pôster oficial do Festival de Cannes 2021, quem acabou ilustrando a presença brasileira nesta edição foi Kleber Mendonça Filho, convidado a integrar o júri que decidirá quem leva a Palma de Ouro.
É uma honra que chega num momento amargo para o cinema brasileiro, que assiste no plano doméstico ao esvaziamento dos mecanismos de financiamento que permitiram a glória do país nesse mesmo festival em 2019, com prêmios nas duas principais seleções do festival (“Bacurau”, de Mendonça Filho, levou o prêmio do júri, e “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, o prêmio na mostra Um Certo Olhar).
Depois de anos de presença crescente na competição oficial e mostras paralelas, não há este ano nenhum longa identificado como brasileiro na competição oficial.
“Em 2019 vimos a coroação de um trabalho de construção de anos, a conquista de um merecido espaço no tapete vermelho mais importante da indústria global. Nossa preocupação neste ano foi tentar ajudar a não deixar essa fresta fechar”, diz Josephine Bourgois, diretora do Projeto Paradiso, uma iniciativa filantrópica que vem atuando para amparar a indústria brasileira e prestou auxílio a alguns dos participantes selecionados nesta edição do festival.
Neste ano, o Brasil participará da subida do tapete vermelho de forma simbólica com a presença de João Paulo Miranda Maria, cujo longa “Casa de Antiguidades” esteve na seleção oficial do festival em 2020, que não ocorreu por causa da pandemia, e que recebeu menção especial do júri em 2016 por seu curta “A Moça que Dançou com o Diabo”.
Além disso, o país tem dois concorrentes à Palma de Ouro de curta-metragem, um formato que costuma passar despercebido nos radares do público e da mídia, mas que pode ganhar importância no atual cenário doméstico de escassez de recursos.
“Sideral”, dirigido por Carlos Segundo e filmado em Natal, já nasceu no vácuo dos mecanismos de incentivo nacionais, mas conseguiu fundos por meio da Lei Aldir Blanc, um suporte temporário criado em resposta à pandemia de Covid-19.
“‘O filme nasceu na correria desse último suspiro da possibilidade de captação de dinheiro no Brasil”, diz o diretor, que tem como atividade remunerada principal ser professor universitário, apesar da longa carreira de curtas-metragens com boa visibilidade no exterior.
Já o segundo concorrente brasileiro, “Céu de Agosto”, de Jasmin Tenucci, não esperou financiamento nacional para se realizar. “É uma história brasileira, que fala de um sentimento ligado ao momento político do país. Foi filmado em São Paulo, com equipe toda brasileira, mas sem nenhum dinheiro captado no Brasil.” O financiamento do curta é todo americano e conta com recursos residuais e parcerias de membros da equipe.
Outro brasileiro aparece na seção Cinéfondation, dedicada a curtas universitários. “Cantareira”, também filmado em São Paulo, é o trabalho de conclusão de curso de Rodrigo Ribeyro na Academia Internacional de Cinema. “É um filme feito com trabalho voluntário e recursos próprios, usando equipamento da escola.”
O único longa-metragem brasileiro em Cannes feito sem coprodução internacional é “Medusa”, da carioca Anita Rocha da Silveira, que participa da Quinzena dos Realizadores.
A produtora, Vania Catani, da carioca Bananeira Filmes, é clara ao dizer que “esse é o único filme 100% brasileiro em Cannes, sem qualquer coprodução internacional e feito por uma equipe quase toda de mulheres brasileiras”. E complementa: “O principal financiamento veio do prêmio de qualidade que recebemos pelo primeiro longa-metragem da Anita. É um filme que nasce de frutos colhidos num período que antecede a atual paralização do suporte à indústria audiovisual.”
A diretora não diminui a importância dos curtas selecionados em Cannes: “Acho errado olhar para o curta como trampolim para o longa. Eu só não faço mais curtas porque é muito difícil conseguir financiamento, quase não há editais para esse formato.” De fato, a primeira participação da diretora em Cannes foi com “Os Mortos-Vivos”, um curta de 2012 exibido na mesma Quinzena que hoje recebe seu segundo longa.
Existe ainda outro curta-metragem ligado ao Brasil. “Billy Boy”, da Universidade Nacional das Artes, de Buenos Aires, foi selecionado na Cinéfondation e escrito e dirigido por Sacha Amaral, um brasileiro radicado na capital argentina. Amaral acha difícil se encaixar no que se costuma chamar de cinema brasileiro, mas aponta seu olhar como ligação com o Brasil. “Estou na Argentina há anos, mas sou brasileiro, cresci em São Paulo, não tem como escapar disso.”
Mas o que faz um filme brasileiro? A pergunta se torna especialmente pertinente nesta edição do Festival de Cannes, quando o Brasil aparece como coprodutor em nada menos que cinco longas-metragens em diferentes seções do festival.
“Marinheiro das Montanhas”, que será exibido numa sessão especial, foi dirigido por Karim Ainouz —um brasileiro radicado na Alemanha— rodado na Argélia e também com registros de arquivo e filmagens feitas em Fortaleza. A produção é da Video Filmes e Globo Filmes, do Rio de Janeiro, em parceria com França e Alemanha.
Sobre a nacionalidade do filme, Aïnouz é categórico. “O que faz um filme brasileiro é um que conta a história de personagens brasileiros, personagens que foram forjados por esse caldeirão cheio de vida e contradições e vitalidade que é o Brasil. Isso confere aos filmes, aos personagens, à aura de um filme o DNA brasileiro, um DNA único e singular.”
“Bergman Island”, de Mia Hansen-Love, que concorre à Palma de Ouro, teve equipe toda internacional, mas foi feito com investimento privado da paulistana RT Features. O mesmo acontece com “Murina”, de Antoneta Alamat Kusijanovic, exibido na Quinzena.
“Noche de Fuego”, de Tatiana Huezo, selecionado na mostra Um Certo Olhar, foi coproduzido pela recifense Desvia Filmes, de Rachel Ellis e Gabriel Mascaro. “O Empregado e o Patrão”, de Manuel Nieto Zas, selecionado na Quinzena, foi filmado na região dos pampas em coprodução com a Sancho&Punta, de São Paulo, e Vulcana Cinema, de Porto Alegre.
Michael Wahrmann, da Sancho&Punta, evoca o DNA latino-americano da produção. “É um filme feito na fronteira do Brasil com o Uruguai, então existe esse elemento cultural comum.”
O produtor acredita que as novas gerações da indústria do cinema tomaram consciência da importância de um maior intercâmbio internacional e passou a buscar laboratórios e mercados lá fora. “Além da troca de know-how, a gente ajuda um filme argentino, depois eles ajudam o nosso. É a construção de um cinema latino-americano”, ele completa.
As parcerias internacionais brasileiras sempre estiveram limitadas aos acordos bilaterais assinados com determinados países, mas nas últimas duas décadas foram alavancadas com o aparecimento dos editais de coprodução internacional.
Isso permitiu que produtores começassem a olhar para projetos estrangeiros em que pudessem entrar como minoritários. Além disso, os prêmios de qualidade também concediam às produtoras com sucesso artístico ou comercial recursos para aplicar em outras produções como bem entendessem.
É o caso de Rachel Ellis, que se interessou pelo trabalho da documentarista Tatiana Huezo e foi atrás de uma parceria. Ao longo do desenvolvimento do longa agora exibido na mostra Um Certo Olhar, uma das mais prestigiosas de Cannes, ficou clara a importância da parceria com a Desvia.
“Havíamos trabalhado com a preparadora de elenco Fatima Toledo nos dois filmes de Gabriel e a indicamos para Tatiana, que vinha do cinema documental e podia se valer dessa assistência para lidar com as crianças.” A brasileira acompanhou todo o processo de preparação das atrizes mirins que protagonizam o filme.
Além das trocas de conhecimento e equipe técnica, essas coproduções promovem o cinema brasileiro de alguma forma? “O paradigma mudou. Se não há mais condição de ser majoritário, esse talvez seja o novo formato para o cinema brasileiro. Precisamos garantir que um cinema pungente como o nosso mantenha sua relevância internacional, o que sempre ajuda a fortalecer a carreira desses filmes até mesmo no Brasil”, completa Bourgois, do Projeto Paradiso.
No entanto, uma bandeira vermelha já subiu para as coproduções. Sumiram os editais e linhas de financiamento que permitiam aos produtores injetar recursos nas produções estrangeiras.
Ellis teve que sair de um projeto recentemente pela impossibilidade de captar recursos no Brasil. “Tiveram de encontrar outro parceiro para financiamento e eu vou continuar no projeto apenas como produtora contratada.”
Com o corte de linhas de financiamento e a paralisação de recursos destinados à cultura, o clima na indústria audiovisual é de desânimo e ansiedade pelo que virá. Alguns dos entrevistados, inclusive, carregam dívidas de produção, a serem pagas quando a Ancine liberar os recursos captados para os filmes.
“Eu sou uma otimista. A estrutura de suporte à indústria existe e está aí. Na Ancine há funcionários ansiosos para trabalhar e para reativar esses mecanismos é muito fácil, basta vontade política”, diz Vania Catani.
Enquanto notícias não chegam do front político, o Festival de Cannes 2021 tem sua largada nesta terça, com presença de quase todas as equipes brasileiras.
Quase todas. Com o Brasil na zona vermelha do contágio de Covid-19, alguns profissionais envolvidos nas produções selecionadas não conseguiram autorização para entrar na França e participar do festival. É um gosto amargo que combina com o momento vivido pela indústria audiovisual nacional.
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