Dono da Davati sugere que não ia vender vacinas superfaturadas

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Foto: Reprodução

Em entrevista à Folha por videoconferência na tarde desta quarta-feira (14), o empresário Herman Cardenas reconheceu que não tinha à mão nenhuma das 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca cuja venda seus representantes negociaram com o governo brasileiro em fevereiro e março deste ano.

De acordo com o dono e presidente da Davati Medical Supply, empresa com sede no Texas (EUA), o que haveria era uma promessa de alocação das vacinas feita pela empresa de um médico junto à AstraZeneca, mas ele não quis informar nomes, alegando sigilo contratual.

O presidente da Davati diz ainda que a empresa seria apenas uma facilitadora do negócio entre a fabriante da vacina contra Covid-19 e o governo brasileiro de Jair Bolsonaro, mediante uma comissão que ele não informou o valor. A AstraZeneca nega que negocie venda para empresas privadas.

Cardenas diz não ter ouvido relato de pedido de propina na negociação e criticou seu representante no Brasil para o negócio, Cristiano Carvalho, afirmando que ele é um vendedor autônomo que representou a empresa apenas nesta tentativa de negociação —e que criou site e email da Davati no Brasil sem o seu conhecimento

Cristiano depõe na CPI da Covid, no Senado, nesta quinta-feira (15).

O caso da Davati veio à tona após a Folha publicar entrevista com o policial militar Luiz Paulo Dominghetti, levado à negociação com o governo por Cristiano, em que ele afirma ter ouvido o pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina feito pelo então diretor de logística da pasta, Roberto Ferreira Dias.

A versão foi repetida por Dominghetti em depoimento na CPI da Covid. Demitido horas após a publicação da entrevista à Folha, Dias nega a acusação.

O presidente da Davati disse ainda que Cristiano chegou a ele por meio de um amigo, o Coronel Guerra, identificado em reportagem da Agência Pública como Glaucio Octaviano Guerra. Coronel da Aeronáutica reformado, Guerra teria aberto em novembro do ano passado a Guerra International Consultants, em Maryland (EUA).

Guerra seria irmão de policiais com histórico de acusações de corrupção e ligações com a família Bolsonaro, diz a Pública.

Um deles é Glauco Octaviano Guerra, ex-auditor da Receita que chegou a ser preso no ano passado na Operação Mercadores do Caos, suspeito de integrar esquema de desvio de verbas na aquisição de respiradores pulmonares pelo Governo do Rio de Janeiro durante a pandemia da Covid-19.

Conforme mostrou reportagem da Folha, Glauco integrou grupo de auditores que alegam na Justiça que tiveram seus dados acessados ilegalmente pela Receita, tese que foi usada pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) para tentar anular provas do caso da rachadinha.

A seguir, a entrevista de Herman à Folha.

“A Davati Medical é parte de um um conglomerado de empresas do Grupo Davati. A primeira é focada em empreendimentos imobiliários no Texas, a segunda importa materiais de construção. A terceira, aberta mais recentemente, há cerca de um ano e meio, é a Davati Medical, que importa produtos médicos e revende para os EUA, no mundo inteiro. Os principais produtos distribuídos desta empresa, através de parceiros, são vacinas da gripe influenza H1N1 e febre amarela, além de mais de 100 medicamentos genéricos”.

“A Davati não vende vacina da Covid-19 e não tem relacionamento direto com os produtores. A razão do oferecimento da vacina para o Brasil foi porque, através de parceiros, ficamos sabendo que teria uma outra maneira de conseguir a venda”, afirma Cardenas.

Segundo ele, havia grupos interessados na alocação da vacina, especificamente da Astrazeneca. “Nós nunca dissemos que tínhamos uma relação direta com a Astrazeneca e nunca foi passada essa informação para ninguém.”

O presidente da Davati diz que a intenção era aproximar as partes.

“Nossa intenção nunca foi vender as vacinas, mas apresentar as partes porque a Davati não tem as vacinas da Covid. Não tínhamos a garantia que conseguiríamos oferecer as 400 milhões de doses da vacina. O número apareceu em nossa proposta porque, quando perguntamos ao Cristiano quantas doses o Brasil precisava, ele disse que a população do Brasil é de cerca de 200 milhões de pessoas”, afirmou.

O empresário disse que calculou duas doses por pessoa, mas que esse número “nunca foi uma garantia”. “Nunca dissemos que tínhamos as 400 milhões de vacinas na oferta”, prossegue Cardenas. “Cristiano nos pediu para ajudar o governo a achar os 400 milhões.”

O empresário também disse não saber se a AstraZeneca tinha conhecimento da oferta apresentada pela Davati.

“Quando comecei a conversar com os alocadores, pedi que mandassem provas de que eles tinham essa alocação das vacinas, apesar de ser um grupo de boa reputação. Eles nos enviaram uma carta comprovando que tinham essa alocação com a AstraZeneca.”

“Não conseguimos comprovar isso diretamente com a AstraZeneca porque eles não atenderam as nossas ligações. Mas eu vi a carta de alocação e me senti confortável em ser facilitador destas negociações com o governo, até porque não pediram nenhum pagamento antecipado.”

O que a Davati ofereceu, acrescenta, “foi ser uma facilitadora entre o governo e esse grupo que tinha alocação da AstraZeneca, para que eles entrassem em negociação.”

Em nota, a AstraZeneca disse que “não disponibiliza a vacina por meio do mercado privado ou
trabalha com qualquer intermediário no Brasil” e que “todos os convênios são realizados diretamente via Fiocruz e governo federal”.

“A Davati nunca foi atrás de fazer negócios com o governo do Brasil. O que aconteceu foi que um vendedor autônomo [Cristiano Carvalho] entrou em contato, através de um outro contato que tenho nos EUA [o coronel da reserva Glaucio Octaviano Guerra] porque ouviu dizer que talvez a Davati teria alocação das vacinas”, afirmou o empresário.

Cardenas diz que conheceu Guerra através de uma outra pessoa [ele não disse quem], há cerca de dois anos, e que desenvolveram uma amizade. “Eu o procurei porque ele tem experiências em conexão com governos para negócios, mas não temos uma relação formal contratual e ele só nos ofereceu ajuda.”

Herman Cardenas disse que o primeiro contato com Cristiano ocorreu por volta de 25 de fevereiro. Segundo documentos obtidos pela Folha, no dia 3 de fevereiro, o então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, entrou em contato com Cristiano por WhatsApp para falar da proposta de oferecimento de vacinas.

“Antes disso, não acho que Cristiano estava falando da Davati. Quando nos conhecemos, ele me mandou detalhes de seu currículo, disse que era a pessoa certa para fazer essas negociações com o governo, tinha experiências e poderia ajudar. Também falou que o governo brasieliro estava procurando vacinas da Covid”, afirma o empresário.

“Deixei claro que não tínhamos a vacina, nem relacionamento com os produtores, mas que teríamos relação com um grupo liderado por um médico que teria alocação de algumas vacinas [Cardenas recusou-se a dar o nome deste grupo à Folha afirmando ter contrato de confidencialidade].”

O empresário diz que concordou em dar uma carta para que Cristiano pudesse vender os produtos da Davati no dia 1º de março. “Ele não é um representante legal da Davati, mas sim de produtos da Davati.”

De acordo com o relato do empresário, Cristiano falou a ele da oportunidade e solicitou documentos para que ele pudesse oferecer a proposta ao governo.

“No dia seguinte, em 26 de fevereiro, produzimos a FCO [Full Corporate Offer], documento com informações sobre o processo de como seria feita a aquisição da vacina e como o governo iria negociar direto com a AstraZeneca para obter a vacina. Também pedimos que fosse assinado um contrato de confidencialidade. Dessa forma, poderíamos passar ao governo informações de quem seria o alocador das vacinas.”

Cardenas afirma que após encaminhar os documentos, Cristiano perguntou se poderia adicionar um nome na carta ao Ministério da Saúde, o de Dominghetti.

“Não conhecíamos Dominghetti antes disso. Como política da empresa, mandamos a carta direto aos governos, por isso solicitei o email de Dias para que a oferta fosse feita diretamente a ele. Também não conhecia Dias, seu nome me foi passado por Cristiano. Cerca de seis dias depois, recebemos uma proposta confirmando o recebimento do email, dizendo que estavam interessados e que entrariam em contato. Esta foi a última comunicação que tivemos do Dias.”

Nesse ponto, Cardenas demonstra descontentamento com Cristiano.

“Nós ficamos bem surpresos de ver recentemente cartas que surgiram na mídia de Cristiano adicionando pessoas como representantes da Davati, como Dominghetti, sem a minha ciência. Ele nunca foi autorizado a ser representante legal da empresa ou assinar em nosso nome, ele só representa a Davati na venda de produtos. A Davati não tem representantes legais no Brasil”, afirma.

“Cristiano nunca comentou que alguém do governo teria pedido comissão ou propina durante as negociações e ele sabia que não participaria disso. A Davati também não controla preços e nunca foi pedido que fosse aumentado.”

“Também não fiquei sabendo do encontro de Dominguetti, Dias e Blanco num restaurante em Brasília no dia 25 de fevereiro. Aliás, este dia foi a primeira vez que conversei com Cristiano. Ele também não tem a obrigação de nos informar todos os passos das negociações.”

“A Davati é uma empresa com muitos anos de experiência e não trabalharíamos de graça”, diz o empresário.

“Não podemos falar qual seria a compensação da Davati nesta negociação por conta da confidencialidade com a alocadora. Mas posso dizer que seria uma fração comparada com outros produtos que vendemos e não seria uma porcentagem sobre a venda, mas um valor fixo que o alocador iria oferecer.”

O presidente da Davati diz ainda que não houve discussão sobre comissionamento a Cristiano ou a outras pessoas que participaram das negociações no Brasil [Cristiano fala em comissionamento de US$ 0,20 em conversa pelo WhatsApp no dia 9 de março com Marcelo Blanco, coronel da reserva e ex-assessor de Dias no Ministério da Saúde].

O empresário também cita como a ONG Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), do reverendo Amilton Gomes de Paula, entrou nas negociações.

“Soubemos que, em algum momento, as negociações passaram de Dias para Élcio Franco [ex-secretário executivo do ministério]. Nunca foi explicado porque as negociações não foram para frente. O que Cristiano disse foi que o governo não poderia comprar diretamente com a Davati ou AstraZeneca, mas de uma empresa brasileira, que teria que ser incluída na segunda oferta”, afirma.

Segundo ele, Cristiano disse que a empresa seria a Senah, no fim de março.

“Pedimos que Cristiano nos mandasse uma carta do governo especificando que a Senah seria responsável e informamos que a ONG não poderia adicionar nada no preço da vacina, pois a AstraZeneca e o alocador não aceitariam, a Davati não coloca preços, eles vêem diretos dos dois. A carta da Senah nunca chegou e as negociações com o governo não continuaram.”

Ele disse que chegou a receber um email da Senah, mas afirma que nunca respondeu.

“Também não tivemos relação oficial com a Senah. Sou familiar com o nome do reverendo Amilton [Gomes, dirigente da ONG] porque Cristiano disse que ele levaria a carta a Élcio Franco.”

“Também fiquei sabendo através da mídia de uma carta que parecia ser da Davati, mas não era, designando o reverendo como representante. Fiquei muito desapontado quando vi que Cristiano tomou a decisão sozinho de dar cartas representação a outras pessoas.”

O presidente da Davati diz ainda que Cristiano comprou o domínio do website da empresa no Brasil e o endereço de email, o que ele nunca teria sido autorizado a fazer. “Mandei ele imediatamente desativar. Também fiquei sabendo que ele se intitulou CEO da Davati no Brasil e isso também nunca foi pedido a ele.”

Sobre a suspeita de que a empresa fez ofertas não legítimas de venda de vacina para reservas indígenas no Canadá, Cardenas disse que houve apenas um desentendimento entre o governo e o grupo que estava negociando as vacinas sobre quem poderia ofertar a proposta.

Cristiano negou ter registrado o site da Davati no Brasil em seu nome ou ter colocado qualquer informação nesse domínio. Sobre o email, disse que o próprio presidente da Davati respondeu certa vez quando este utilizava tal endereço. Também afirmou que as demais acusações do empresário são infundadas e que no início de fevereiro as tratativas foram feitas com o coronel Guerra.

Folha de S. Paulo

 

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