Bolsonaro não pode parar de falar em urnas
Foto: Reprodução
A insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em repetir falsas alegações contra as urnas eletrônicas faz com que o político consiga pautar o debate público, indicam dados de monitoramento de redes sociais, WhatsApp e notícias, apesar de não existirem registros de fraude eleitoral no Brasil desde o uso do voto eletrônico.
De acordo com o site Aos Fatos, do início de seu mandato até o começo de agosto, o presidente deu pelo menos 192 declarações contra as urnas eletrônicas e a favor do voto impresso. Bolsonaro intensificou os ataques em novembro de 2020, mês de eleições municipais no Brasil e presidenciais nos Estados Unidos, e a partir de abril, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) anulou condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o tornou novamente elegível — 160 das 192 declarações foram dadas de abril em diante.
Segundo dados da plataforma Media Cloud, que permite fazer buscas em textos jornalísticos, as menções ao termo “fraude nas urnas eletrônicas” em reportagens atingiram picos em novembro e a partir de maio.
Um estudo do Monitor de WhatsApp da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) mostrou que, entre março de 2020 e julho de 2021, os maiores picos diários de mensagens com termos relacionados a fraudes nas urnas também ocorreram em maio deste ano e novembro de 2020.
A ferramenta de monitoramento Crowdtangle traz um cenário parecido no Facebook. A reportagem fez uma busca com as palavras-chave usadas na pesquisa da UFMG e dentro do mesmo período do estudo. O resultado mostrou picos de interações (curtidas, compartilhamentos e comentários) em posts com estes termos em novembro de 2020 e a partir de maio de 2021.
O professor de Comunicação Política da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio) Arthur Ituassu, vice-presidente da ComPolítíca (Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política), explica que este poder de pautar o debate público chama-se “teoria do agendamento”.
“É um duplo movimento: a mídia institucional trabalha o tema porque o presidente fala nele; e a comunicação política da extrema-direita movimenta a pauta nas redes sociais”, explica.
Juntando esse poder de agendamento do presidente com a estratégia deliberada nas redes sociais, você consegue alçar esse assunto, que é um assunto marginal, a uma posição de relevância no debate público”
Arthur Ituassu, professor da PUC-Rio
Apesar da insistência de Bolsonaro nas falsas alegações de fraudes, o assunto parece não ser motivo de preocupação para boa parte dos brasileiros. Uma pesquisa do Datafolha de janeiro constatou que 69% dos brasileiros têm algum grau de confiança na urna eletrônica, contra 29% que afirmaram não confiar no sistema. Já uma pesquisa encomendada pela CNT (Confederação Nacional dos Transportes) e divulgada em julho mostrou que seis entre dez eleitores têm ao menos confiança moderada nas urnas eletrônicas.
De acordo com a psicóloga Ana Bock, professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), a insistência em uma informação, mesmo que mentirosa, pode resultar num processo que se chama “ancoragem”.
Funciona assim: o presidente fala algo e dá a isso o tom de informação verídica. Por exemplo, que as urnas eletrônicas não são seguras e que ele foi vítima de fraude — o que não é verdade. Depois, seus seguidores começam a repetir o discurso até que ele seja inevitável aos não envolvidos na estratégia. Está feita a ancoragem. A partir disso, qualquer coisa que se diga sobre urnas eletrônicas estará associada ao que o presidente falou.
“O que essas mentiras fazem quando são repetitivas é oferecer aos poucos essa ancoragem, um ponto em que as informações novas que chegam possam se fixar”, afirma a professora.
A psicóloga explica que o objetivo da estratégia não é criar dúvidas sobre o sistema eleitoral, mas trocá-las pela certeza de que as urnas eletrônicas não seriam confiáveis. Segundo ela, ninguém “ancora” algo que acredita ser uma mentira.
Esse processo só pode acontecer se a pessoa acha que o que ela está ouvindo é verdade. Por isso, essa mentira das urnas é muito eficiente. Ela é simples, maniqueísta, ‘o voto impresso é bom e o voto eletrônico é mau’; pronto, criou a ancoragem necessária.”
Ana Bock, professora da PUC-SP
Para o psicanalista Christian Dunker, professor da USP (Universidade de São Paulo) e colunista de Tilt, o canal de ciência e tecnologia do UOL, a eficácia da repetição de mentiras depende da criação de um clima de que “estão todos tentando nos enganar”.
Bolsonaro, diz o professor, “consegue multiplicar a sensação de que você está sendo enganado”, o que cria um cenário de desamparo em que pessoas podem espalhar desinformação como uma precaução contra as supostas enganações.
“Sou eu querendo proteger quem eu amo, prevenindo as pessoas sobre esse ‘golpe'”, afirma Dunker.
Outro mecanismo que propicia a disseminação de mentiras, diz o professor, é a criação de um inimigo indeterminado que ameaça um coletivo igualmente impreciso.
Se estamos todos em perigo, estamos todos juntos. Isso cria uma ideia de ‘nós’, que não sabemos que tamanho tem. Ou seja, não sabemos quem somos nós e nem quem são eles, mas sabemos que nós estamos aqui, juntos, e eles estão lá. Isso faz parte da retórica paranoica conspiratória. Essa indeterminação é muito importante para manter a paisagem necessária para que a mentira prospere.”
Christian Dunker, psicanalista, professor da USP e colunista do UOL
Neste caso, diz Dunker, a mentira é “o tratamento para o desamparo” criado pelo próprio responsável pela situação.
“A ideia de que as urnas são ‘fraudáveis’ não é exposta para a gente ir lá verificar se é verdade. Na filosofia da linguagem se diz que certos atos não estão ligados nem à verdade e nem à falsidade, mas à felicidade ou infelicidade. São os chamados atos performativos. A pessoa defende algo porque acha que aquilo a fará mais feliz, será melhor para ela”, explica.
Nada disso significa que o país esteja refém de uma estratégia de comunicação. Segundo Ana Bock, o antídoto deve ser “organizar vozes que se contraponham a essa estratégia”.
“Essas vozes podem vir tanto da imprensa e das instituições quanto das escolas, líderes comunitários, igrejas, enfim, pessoas que tenham a confiabilidade de suas comunidades e consigam desestabilizar essas certezas propagadas pelo governo. Nem sempre a melhor estratégia é chamar o maior especialista do mundo para falar com as comunidades”, afirma.
A melhor forma de enfrentar a ancoragem, diz a professora, é “produzir dissonância”; ou seja, apresentar informações e conceitos que quebrem esse processo. Segundo ela, aí entra o papel dos veículos de comunicação. Bock afirma que a ideia de que o sistema eleitoral é fraudável tem aceitação porque parte da imprensa vem há muitos anos “associando política a corrupção e bandidagem”.
“Isso fragiliza o ambiente em que as decisões são tomadas, que é o ambiente da política”, diz. “Daí a importância de se produzir dissonância: uma mídia que divulga informações diferentes, contextualizadas, que nem sempre combinam com aquilo em que já se acredita, pode nos fazer mudar de opinião.”
A chance de mudar de opinião, aliás, é ponto central das críticas de Bock. “Não podemos criminalizar aquele que muda de opinião, que se arrepende de ter defendido algo no passado. Muitas vezes as pessoas acham que se manter firme em opiniões antigas é demonstração de força, é digno de elogios.”
Dunker também aposta na liberdade para recuar. “Não estamos mais falando apenas de uma rede de fake news, mas de conversas de roda de amigos, círculos familiares, e isso envolve sentimentos muito delicados, como a vergonha. Ninguém gosta de dizer que caiu num golpe.”
Outro passo, diz o psicanalista, é aumentar a comunicação com essas pessoas.
“A retórica da conspiração está muito baseada na ideia de que ‘vivo envolto por grandes instituições’, mas não sei quem são as pessoas, nunca vi o presidente, então você começa a especular se aquelas pessoas estão mancomunadas com alguém. Então, as pessoas que têm poder de decisão precisam falar mais pessoalmente com os outros. Os representantes dos poderes, os jornalistas, os cientistas, os professores, precisam entrar nesse circuito, mas precisam se comunicar de uma maneira pessoal”, afirma.
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