CPI teve ameaças, provocações e espionagem

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Foto: Mateus Bonomi/Anadolu/Getty Images

Na noite de 22 junho, o senador Omar Aziz, presidente da CPI da Pandemia, estava radiante. “Pegamos o governo”, comemorou, durante uma reunião com alguns de seus principais assessores. Ele havia acabado de se encontrar com Renan Calheiros, o relator da comissão, e finalmente definido a data de um depoimento classificado por ambos como letal. O servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, que havia sido ouvido sigilosamente pelo Ministério Público, hesitava em reproduzir publicamente o teor de uma conversa que tivera com Jair Bolsonaro meses antes, no Palácio da Alvorada, quando informou ao presidente que estava em andamento um golpe bilionário envolvendo a compra de vacinas. Bolsonaro teria ouvido a denúncia e prometido tomar providências, mas nada fez. A história era a bomba que faltava, a prova que a comissão perseguia para demonstrar que, além de incompetente, omisso e negacionista, o governo também era conivente com malfeitos. E o que era ainda melhor: o funcionário concordou em narrar a história diante das câmeras.

“Tudo vai desmoronar”, previu Omar Aziz, sem saber que a conversa estava sendo ouvida. Entusiasmado, o senador explicou aos assessores que a revelação, além de demolir o discurso de Bolsonaro de que não havia corrupção no governo, também serviria para ele, Omar, se vingar do presidente da República, que o desqualificava frequentemente em lives transmitidas pela internet. “Virou uma questão de honra: ou eu ou ele”, desabafou o senador, que ainda fez uma última previsão: “Esse governo não se aguenta. Todo o resto vai virar titica de galinha”. Três dias depois, Luis Ricardo Miranda, acompanhado do irmão, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), confirmou na CPI ter alertado o presidente da República sobre irregularidades em um contrato que havia acabado de ser assinado para a compra da Covaxin, a vacina indiana contra a Covid. O presidente, segundo eles, se comprometeu a solicitar uma apuração do caso. No encontro, Bolsonaro ainda teria sugerido que o líder do governo, o deputado Ricardo Barros (PP-PR), poderia estar envolvido na trama.

A sessão da CPI que ouviu os irmãos Miranda foi eletrizante, como se esperava, mas o governo não desmoronou, como o senador previu. A informação de que o presidente foi avisado e nada fez, porém, deu à comissão argumento para acusar Bolsonaro de prevaricação — crime que ocorre quando o servidor público deixa de praticar um ato de sua responsabilidade para preservar outros interesses. No relatório final de Renan Calheiros, apresentado na quarta-feira 20, depois de seis meses de investigação, Bolsonaro é acusado por mais outros oito crimes, entre eles charlatanismo, fraude, extermínio, emprego ilegal de verba pública e prática de atos desumanos (veja o quadro). O relator solicitou o indiciamento de outras 65 pessoas. Na lista estão quatro ministros do governo (Marcelo Queiroga, Onyx Lorenzoni, Wagner Rosário e Braga Netto), três ex-ministros (Eduardo Pazuello, Ernesto Araújo e Osmar Terra) e três filhos do presidente (Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro).

É a primeira vez na história que o Congresso produz um inventário tão extenso de imputações penais a um presidente da República. O fato é que, desde o início da pandemia, Jair Bolsonaro, de maneira absolutamente irresponsável, colocou o governo na contramão de praticamente todas as recomendações feitas pelas autoridades sanitárias — foi contra o isolamento social, a obrigatoriedade do uso de máscaras e demorou a comprar as vacinas. A CPI ouviu vários depoimentos que mostraram ações explícitas de negacionismo e pregação oficial contra as medidas de prevenção. Também obteve relatos de omissões que podem ter ampliado a contaminação e o número de mortes. E, por fim, concluiu que o presidente da República teve a intenção deliberada de exterminar uma parcela da população brasileira, como sugeriu o senador Renan Calheiros. Deduções como essa servem para adornar discursos, colher dividendos eleitorais e agradar a uma parte da plateia. O problema é que deduções como essa também minam a credibilidade do trabalho da comissão.

Desde a instalação da CPI, Calheiros mirou de maneira certeira o governo, mas, no meio do caminho, fixou entre os alvos a família presidencial, especialmente o senador Flávio Bolsonaro. Os dois trocaram ofensas durante uma sessão transmitida ao vivo. O filho do presidente chamou o relator de “vagabundo”, cena que viralizou nas redes sociais. O troco veio em forma de uma investigação paralela. O relator transformou um cômodo de sua casa num bunker, cujo objetivo era exclusivamente rastrear o que chamou de “círculo de influência” de Flávio. A lista incluía 26 advogados, lobistas, empresários, assessores e funcionários de alto escalão. A tese era de que o Zero Um usava sua condição para viabilizar negócios no governo. Meses de investidas infrutíferas, no entanto, levaram o senador a abandonar a missão. No relatório final, Flávio foi acusado de incitação ao crime por meio da propagação de fake news durante a pandemia, a mesma imputação atribuída a Carlos e a Eduardo Bolsonaro.

Os governistas também lançaram mão de investigações clandestinas. Logo após surgirem os primeiros rumores da tal “bomba” que estava sendo armada no gabinete de Omar Aziz, o deputado Luis Miranda passou a ser monitorado. Na época, um conselheiro do presidente procurou VEJA para informar que o depoimento do parlamentar e de seu irmão era parte de uma conspiração orquestrada para atingir o governo — tudo combinado com os senadores Omar Aziz e Renan Calheiros em reuniões secretas. Ao ser indagado se tinha provas do que estava dizendo, o conselheiro mostrou um vídeo em que um homem de camisa azul, que seria Miranda, é filmado de longe, descendo de um carro e entrando por uma porta lateral do Congresso. As imagens seriam parte de um acervo, mas nada além disso foi mostrado. “Desde que prestei depoimento, muita coisa estranha começou a acontecer. Meu celular pegou fogo, recebi ameaças, mas não percebi que estava sendo seguido”, disse o deputado.

As suspeitas do conselheiro-espião, ao que parece, tinham algum fundamento fático. Em meados de julho, depois de prestar o depoimento, Luis Miranda apresentou aos senadores da comissão um policial militar que se dispunha a levantar informações comprometedoras contra os parlamentares governistas da CPI. Um dos alvos citados era o senador Marcos Rogério (DEM-RO), um ferrenho defensor do presidente da República. Não se sabe se essa parceria prosperou. Mas é fato que, em outra frente, um conhecido policial civil de Brasília, também de maneira clandestina, coordenou um grupo arregimentado para bisbilhotar as relações entre membros do governo e empresas investigadas pela CPI. Foi esse grupo de espiões que levantou as primeiras suspeitas sobre os contratos da VTCLog, empresa de logística que presta serviços ao Ministério da Saúde. No relatório final, Calheiros pediu o indiciamento dos sócios da VTCLog e também da Precisa Medicamentos, a empresa que intermediaria a venda das vacinas indianas a preços superfaturados, segundo a denúncia de Luis Miranda, negócio que acabou cancelado após a intervenção da comissão. Ainda faltava a prova de corrupção.

Diferentemente de outras CPIs, não foi fácil obter qualquer tipo de colaboração das testemunhas ou investigados — das quase sessenta pessoas convocadas a depor, metade compareceu municiada de habeas-corpus que garantia o direito ao silêncio. Para tentar driblar essa dificuldade, muitos dos depoentes foram convidados para uma conversa informal, na antessala da comissão, onde eram instados a colaborar com a CPI diante de um argumento bem convincente: a ameaça de prisão. Em um caso relatado a VEJA pelo próprio depoente, que pediu para ter o nome preservado, Omar Aziz não só insinuou que ele poderia ser preso como disse o que gostaria de ouvir: “Só quero três nomes, três nomes. Flávio Bolsonaro, Ricardo Barros e Roberto Dias (ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde)”. Na hora do depoimento, diante das respostas evasivas, Aziz chegou a desligar o seu microfone, cobriu a boca com a mão e fez uma última investida: “Três nomes, três nomes”.

“Como seria bom se aquela CPI estivesse fazendo algo produtivo para nosso Brasil. Tomaram tempo de nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresários”, discursou Bolsonaro no exato momento em que o documento da CPI era lido em Brasília. O presidente provavelmente desconhece, mas pelo menos cinco desses servidores se converteram em delatores informais. Em troca de proteção, revelaram bastidores e entregaram documentos que foram usados para sustentar as acusações contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e Walter Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil. O general e atual ministro da Defesa, aliás, protagonizou um dos momentos mais tensos, quando a comissão começou a discutir a possibilidade de convocá-lo. “O que aconteceria se o ministro se recusasse a comparecer?”, perguntou um assessor do presidente da República, emendando ele mesmo a resposta: “A Polícia Federal vai levá-lo à força? E, se na hora de conduzi-lo, o general estiver acompanhado de algumas pessoas armadas de fuzil?”. O recado foi compreendido, a oitiva nunca aconteceu, mas o militar foi incluído na lista de autoridades acusadas por crime de epidemia culposa.

Como peça política, o relatório é devastador para a imagem do governo — e para Jair Bolsonaro em particular. Sob o ponto de vista jurídico, ainda há um caminho longo a ser percorrido. Depois de aprovadas pelo plenário, as conclusões da CPI, na parte que envolve o presidente, serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR) e à Câmara dos Deputados, responsável por analisar a acusação de crime de responsabilidade e decidir se há evidências que justifiquem a abertura de um processo de impeachment. Já a continuidade das ações penais ficará sob a batuta do procurador-geral Augusto Aras. Para que o presidente da República seja julgado por crime comum, também é necessário que pelo menos 342 deputados autorizem o andamento do processo, o que, diante da confortável base de apoio do governo, hoje seria praticamente impossível. No plano internacional, as acusações de crime contra a humanidade também não devem produzir nada além de mais desgaste para Jair Bolsonaro. O Tribunal Penal Internacional, em Haia, onde a denúncia será apresentada, normalmente atua quando há comprovação de que as instituições de determinado país perderam as condições de funcionar adequadamente — o que, felizmente, não é o caso do Brasil.

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