Entre a CPI e Bolsonaro estão Aras e Lira
Foto: Dida Sampaio/Estadão
A cúpula da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid traçou uma estratégia jurídica para levar o presidente Jair Bolsonaro a julgamento diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF). A ideia, tratada como “plano B”, é acionar a Corte caso o procurador-geral da República, Augusto Aras, decida engavetar as conclusões da CPI, deixando de processar Bolsonaro e aliados do governo com foro privilegiado. Senadores da CPI vão levar a Aras, ainda nesta quarta-feira, 27, o relatório final da comissão, que pede o indiciamento de Bolsonaro em nove crimes, entre eles contra a humanidade, por causa de sua conduta na condução da pandemia do coronavírus.
Preocupado em não deixar que as conclusões de um trabalho de seis meses sejam engavetadas, o comando da CPI pretende usar a chamada ação penal subsidiária pública, ferramenta jurídica que permite à vítima ou ao seu representante legal propor a acusação em caso de inércia do órgão que deveria fazê-lo, em até 30 dias. O movimento, no entanto, é visto com muita cautela por juristas e vem sendo questionado até mesmo por integrantes da CPI.
A dúvida é se um eventual arquivamento dos pedidos de indiciamento feitos pela CPI da Covid poderia ser classificado como “inércia” da Procuradoria-Geral da República (PGR). Não há acordo sobre o caminho a seguir nem no grupo de oposição da CPI, mas uma ala avalia que o tema deve ser levado para debate no Supremo.
Aras tem poder para dar ou não continuidade às conclusões da CPI, que também serão encaminhadas nesta quarta ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Cabe ao procurador-geral investigar e apresentar denúncias criminais contra autoridades com foro privilegiado. Caso a PGR decida acusar formalmente Bolsonaro – hipótese considerada remota –, ainda assim seria preciso autorização da Câmara, comandada por Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão e aliado do presidente, para o processo seguir adiante. Somente depois desse trâmite a ação seria submetida a julgamento no Supremo.
O Estadão apurou que muitas das condutas apontadas pela CPI contra Bolsonaro, como crime sanitário por falta do uso de máscara, por exemplo, já foram analisadas e arquivadas pela Procuradoria-Geral. Caso Aras decida enterrar agora os pedidos da CPI, Bolsonaro e aliados só responderão a processos dependendo do resultado de uma série de discussões que serão travadas na Justiça.
Na interpretação do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um arquivamento será equivalente à inércia pela gravidade da situação que mobilizou a sociedade desde que a pandemia começou, em março de 2020. Para ele, o fato tornaria pertinente uma ação subsidiária.
“O caminho seria sustentar uma nova tese perante o Supremo para permitir o manejo de ação penal privada, subsidiária da pública, nos casos em que o PGR se omite, incluídas as hipóteses de arquivamento manifestamente contrário ao interesse público”, disse Vieira.
O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) discorda. “A ação penal privada subsidiária da pública só tem incidência na hipótese de o PGR se omitir. Se ele optar pelo arquivamento, não tem cabimento”, destacou Contarato.
O “plano B” para driblar eventuais procrastinações da Procuradoria-Geral da República encontra resistências no Supremo e até entre opositores de Aras. A tese dificilmente prosperará, no diagnóstico de ministros do STF, porque exigiria que a Corte recusasse ato de competência exclusiva do procurador-geral. No grupo de 29 subprocuradores-gerais que indicaram crimes de responsabilidade de Bolsonaro e criticaram Aras por omissão sobre a conduta do presidente, em agosto, também não há a intenção de apoiar publicamente os senadores para que pressionem a PGR.
Além disso, não está claro quem teria a legitimidade para propor a ação. A cúpula da CPI mantém conversas com representantes de associações de familiares de vítimas da covid-19 e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “A ação penal subsidiária da pública pressupõe que haja uma vítima específica. A vítima é a sociedade como um todo e quem a representa, em casos de ações penais públicas, é o próprio Ministério Público”, afirmou Cássio Rebouças de Moraes, advogado criminalista, professor e especialista em Ciências Penais.
O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tem orientado integrantes da CPI da Covid sobre o “plano B” desde meados do ano. Kakay avalia que existe risco de o trabalho da CPI ser em vão e chegou a recomendar aos senadores uma mudança legislativa que pudesse esvaziar o “poder especial” do procurador-geral. A iniciativa não prosperou.
“Se em 30 dias Augusto Aras não fizer nada, é necessário que se dê entrada com uma ação penal subsidiária. Quem tem legitimidade? Essa é uma discussão séria”, destacou Kakay. “Por isso, achei que tinha de haver mudança legislativa, para não haver dúvidas quanto à legitimidade. Na minha visão, os parentes dos que morreram teriam. Mas, em casos como esse, de uma CPI que parou o País, os próprios partidos teriam de ter. Se não, não teremos nenhuma efetividade.”
Para o advogado criminalista Fábio Tofic Simantob, caso Aras arquive pedidos para indiciar Bolsonaro, apenas fatos novos poderiam motivar a reabertura da investigação. Do contrário, uma ação subsidiária não teria efetividade. O criminalista observou que uma proposição desse tipo carece de precedentes e, portanto, o debate caberá ao Supremo.
“Quando é o próprio procurador-geral que pede o arquivamento, o STF não tem muito o que fazer. Seria uma situação um pouco nova”, argumentou Tofic Simantob. “Uma promoção de arquivamento aceita pelo Supremo inviabiliza uma ação subsidiária, a menos que se tragam novos elementos”.
No Supremo, a estratégia não é vista com chances de prosperar, mas os magistrados optaram por se manter em silêncio, mesmo nos bastidores, para evitar atritos institucionais com a PGR.
Em conversa com o Estadão, sob a condição de anonimato, um ministro disse ser preciso aguardar a movimentação do Ministério Público para que haja um cenário claro do que é possível fazer em caso de arquivamento ou omissão.
A avaliação predominante na Corte é a de que o “plano B” da CPI não passa de um gesto político para dar visibilidade às conclusões da comissão. Motivo: não faz sentido os senadores apresentarem o relatório da CPI diretamente ao Supremo, mesmo porque, caso isso ocorra, a provável reação do relator da ação seria a de encaminhá-lo à Procuradoria-Geral para uma consulta.
Pressão. De qualquer forma, a cúpula da CPI recuou da ideia de realizar um ato político para pressionar o presidente da Câmara a tomar uma decisão sobre abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro, a partir das constatações do relatório.
Integrantes da CPI vinham conversando com juristas para que eles formalizassem um pedido de afastamento de Bolsonaro, ancorado no resultado de seis meses de trabalho da comissão, mas desistiram da ideia.
“A CPI, diretamente, não pode peticionar pelo impedimento do presidente. Alguém, com base em tudo o que se verificou, com base nas provas colhidas, vai ter de fazer uma petição”, disse o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL). “O crime de responsabilidade é apontado no relatório. A oferta de pedido de impeachment vai estar à disposição para quem quiser. Podem os partidos políticos, juristas ou qualquer pessoa do povo fazê-lo”, completou o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
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