Veto do TSE a showmícios é confuso e deve dar problemas

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Foto: Flávio Florido/Folhapress

Proibidos desde a minirreforma eleitoral de 2006, os showmícios (apresentações artísticas em comícios) devem continuar vetados, decidiu o STF (Supremo Tribunal Federal) em outubro. A corte entendeu que a liberação poderia criar um desequilíbrio na disputa eleitoral e influenciar a escolha do eleitor por meio do oferecimento de uma vantagem.

De qualquer forma, o STF permitiu as apresentações artísticas em eventos específicos de arrecadação de campanha, por avaliar que esse público já teria afinidade com o candidato e que, portanto, não haveria interferência no voto.

Dois entre três especialistas consultados pela reportagem, porém, divergem da proibição por acreditar que ela subestima o eleitor. Eles também afirmam que eventuais excessos poderiam ser coibidos pela Justiça Eleitoral e questionam se o lugar para tratar do tema não deveria ser o Legislativo.

Quando os showmícios foram proibidos e por quê? Os showmícios foram proibidos pela minirreforma eleitoral de 2006. O objetivo foi garantir a paridade de armas na disputa eleitoral, já que os grandes shows eram contratados pelos maiores partidos, que tinham mais dinheiro para investir nas campanhas.

Na eleição de 2002, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu adversário na corrida presidencial, José Serra (PSDB), chegaram a levar mais de 100 mil pessoas para cada showmício.

Como noticiou a Folha à época, entre os artistas que faziam showmícios para os tucanos, Leonardo cobrava R$ 100 mil por show, Chitãozinho & Xororó, R$ 75 mil, e a banda adolescente KLB, R$ 50 mil.

Zezé Di Camargo & Luciano receberam R$ 75 mil por show para Lula, totalizando mais de R$ 1 milhão na campanha daquele ano.

​A minirreforma de 2006 acrescentou à lei nº 9.504, de 1997, o seguinte parágrafo: “É proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral”.

​​​O que o STF julgou em outubro de 2021? O Supremo julgou uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade) movida em 2018 por PSB, PT e PSOL, que pedia a liberação dos showmícios não remunerados (sem cobrança de cachê) e das apresentações artísticas em eventos de arrecadação eleitoral.

Qual foi o argumento dos partidos para tentar derrubar a proibição? Na ação, os advogados das legendas defenderam que tanto a proibição dos showmícios não remunerados quanto a vedação dos eventos artísticos de arrecadação eleitoral são incompatíveis com a liberdade de expressão assegurada pela Constituição Federal.

Os advogados argumentam que a política não se coloca apenas no campo da razão, mas também mobiliza paixões e sentimentos. Por isso, segundo eles, a regulação das campanhas eleitorais não pode buscar a supressão da emoção, como fazem muitas vezes a legislação e a jurisprudência.

“Essa visão se conjuga com concepção elitista e paternalista da política, que enxerga os cidadãos como crianças imaturas, facilmente manipuláveis, que deveriam ser protegidas de ‘influências indevidas’ no cenário eleitoral, por meio da ‘tutela’ do legislador ou do juiz eleitoral”, diz a ação.

As legendas também afirmam que as restrições às artes no contexto eleitoral não ofendem apenas os direitos dos artistas e dos candidatos que eles apoiam, mas também os dos eleitores, “que ficam privados do acesso a manifestações artísticas que poderiam ser relevantes para a formação do seu próprio convencimento político”.

​​O que decidiu o Supremo? Por 8 votos a 2, a corte decidiu que a proibição dos showmícios, remunerados ou não, segue valendo. Por 7 votos a 3, porém, foram liberadas as apresentações artísticas em eventos de arrecadação de campanha.

Votaram pela manutenção da proibição os ministros Dias Toffoli (relator), Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux. Os ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia se posicionaram a favor da liberação dos showmícios não remunerados.

A maioria dos ministros entendeu que a vedação é importante para coibir o abuso de poder econômico e garantir a isonomia entre os candidatos, assim como para evitar que o voto do eleitor seja influenciado pelo recebimento de uma vantagem.

“O que a norma em testilha [em discussão] objetiva evitar é que a opinião ou o sentimento que um eleitor venha a nutrir por um ou outro candidato seja impulsionado pela reputação ou fama de um artista por meio da confusão entre o palco, do qual se busca deleite e lazer, e o palanque político, do qual se extraem informações acerca da candidatura”, disse Toffoli em seu relatório.

Em linha diversa, Barroso e Cármen Lúcia defenderam o direito à liberdade de expressão dos artistas.

“Impedir a participação não remunerada de um artista em um evento público de apoio a um candidato é um cerceamento da liberdade de expressão, da liberdade da manifestação de pensamento e do direito político de participar com a sua arte do direito político brasileiro”, afirmou o ministro.

Por que as apresentações em eventos de arrecadação foram liberadas? As apresentações artísticas para arrecadação de campanha foram liberadas porque a maioria dos ministros entendeu que esses eventos se diferem dos showmícios.

Enquanto o último é voltado para o público em geral, com objetivo de captação de votos, os eventos de arrecadação têm como finalidade acionar apoiadores para juntar recursos para as campanhas.

“Ao contrário dos showmícios, que são voltados ao público em geral, os eventos de arrecadação são frequentados por pessoas que já guardam simpatia pela campanha que pretendem financiar, não havendo que se falar, aqui, de interferência na livre consciência do eleitor, mas no exercício do direito de contribuir com um projeto político que lhe seja desejável”, disse Toffoli.

​Como ficam as lives musicais de apoio a candidatos? Advogados consultados pela Folha entendem que o mesmo princípio que vale para os eventos físicos também vale para as lives. Ou seja, de acordo com essa interpretação, as apresentações musicais em transmissões ao vivo estariam liberadas desde que tivessem como objetivo a arrecadação para campanha eleitoral.

Em outubro de 2020, a Justiça Eleitoral chegou a proibir uma live de arrecadação do músico Caetano Veloso para as campanhas dos então candidatos às prefeituras de Porto Alegre, Manuela D’Ávila (PC do B), e de São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL).

A Justiça entendeu que a live burlaria a lei que proíbe os showmícios. Em recurso apresentado pela campanha de Manuela D’Ávila, porém, o TSE expediu decisão liminar liberando o show virtual, contanto que não houvesse pedido expresso de votos.

Por maioria, os ministros entenderam que não seria possível realizar a censura prévia nem avaliar a legalidade de um evento de arrecadação que ainda não havia ocorrido e que não é vedado por lei.

O que dizem os especialistas a respeito da proibição dos showmícios? Especialistas consultados pela Folha divergem a respeito da proibição. Flávio Luiz Yarshell, professor de direito na USP e ex-juiz eleitoral, afirma que o entendimento de que os showmícios podem interferir na vontade do eleitor é subestimá-lo. “O eleitor decide por uma perspectiva assistencial do Estado ou pelo desempenho na economia”, diz.

O advogado também afirma que tem dúvidas a respeito da competência do Supremo para tratar do tema. “Parece que deveria ter ficado para o Legislativo. O legislador deveria avaliar até que ponto [o showmício] é conveniente ou não.”

Rubens Beçak, professor de direito eleitoral da USP de Ribeirão Preto, concorda que a proibição subestima o eleitor, como se houvesse um voto de cabresto. “Houve uma progressão enorme da educação político partidária no país”, afirma.

O advogado também avalia que o Brasil tem um regramento excessivo para as campanhas, o que faz com que elas sejam pouco atrativas, especialmente para os jovens, prejudicando a conscientização a respeito da importância de participar das eleições.

“Não acho que o processo eleitoral tenha que ser um circo, mas tem que usar meios para chamar as pessoas e passar sua mensagem. Chegar num comício, o candidato pegar o microfone e falar, falar, falar, nos tempos de hoje não é atraente. Cada vez mais as pessoas vão se afastando”, diz.

Beçak afirma ainda que há meios posteriores para corrigir eventuais distorções no processo eleitoral, que não envolvem a proibição. “Se outros partidos que se sentirem prejudicados forem à Justiça e conseguirem provar que o showmício distorceu o resultado da eleição, podem impugnar.”

A advogada Patricia Greco, mestra em direito pela UEL (Universidade Estadual de Londrina) e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), por outro lado, avalia que a decisão do STF foi adequada.

“O showmício pode acabar influenciando o eleitorado não em decorrência de melhores propostas do candidato, mas de atrelar a sua imagem a um artista que já tem um prestígio. Isso gera um desequilíbrio na disputa”, afirma.

Greco diz que o eleitorado precisa conseguir diferenciar a figura do candidato e suas propostas dos seguidores que ele possa ter no meio artístico. “No showmício isso não fica claro.”

A advogada também afirma que o showmício se assemelha à doação de um benefício para o eleitor, o que é vetado pela legislação eleitoral. “É como se um candidato estivesse doando um ingresso para você entrar no show”, diz.

“Qual a diferença entre ganhar uma cesta básica, um boné ou um ingresso para um show? Pode-se pensar: ‘Ah, mas no que um boné vai influenciar?’. A depender do local que a gente esteja, pode ter impacto. Há várias comunidades carentes no Brasil onde o eleitor às vezes por R$ 50 vende seu voto.”

Folha  

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