Bolsonaro escolhe lado em disputa entre Rússia e EUA
Foto: Eraldo Peres/AP/Imageplus
A política externa nunca foi um ponto forte do governo de Jair Bolsonaro. Representante da outrora poderosa ala ideológica, Ernesto Araújo, o primeiro chanceler nomeado pelo presidente da República, tinha orgulho da condição de pária internacional a que submetera o Brasil. O próprio mandatário e seus assessores também contribuíram para arranhar a imagem do país no exterior, especialmente ao adotarem uma postura negacionista em relação ao desmatamento da Amazônia e à pandemia do novo coronavírus. Preocupado com o desgaste de sua administração, o presidente até reduziu a participação dos radicais em sua equipe e, a pedido de aliados do Congresso, mudou o comando do Itamaraty, substituindo Ernesto Araújo pelo discreto embaixador Carlos Alberto França. A troca reduziu as caneladas da diplomacia nacional, mas não foi capaz de deter todos os desatinos do governo e, principalmente, de Bolsonaro. O mais recente deles é a intenção do presidente de fazer uma visita oficial em fevereiro à Rússia, país que ameaça invadir a Ucrânia e está em pé de guerra com a aliança militar do Ocidente e os Estados Unidos, o segundo maior parceiro comercial do Brasil.
Conhecido por distribuir descortesias gratuitas a outros líderes mundiais, como o francês Emmanuel Macron, Bolsonaro anunciou em dezembro que viajaria para um encontro com o presidente russo Vladimir Putin a fim de incrementar as relações comerciais entre os dois países e a importação de fertilizantes pelo agronegócio brasileiro. “Eles têm suas deficiências, nós temos aqui também. Vamos aprofundar esse relacionamento”, afirmou o presidente na ocasião. “Uma viagem dessas é sempre inesquecível.” De fato, o giro, se for mantido, tem tudo para se tornar inesquecível, mas por suas consequências negativas para o Brasil. Desde o ano passado a Rússia tem deslocado tropas para a fronteira com a Ucrânia, antigo território da União Soviética que ameaça invadir. Já há mais de 100 000 soldados russos na região, que fazem exercícios militares com o objetivo de intimidar a Ucrânia e interromper suas negociações para entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar do Ocidente criada após a II Guerra Mundial. A tensão regional ganhou escala global porque os ucranianos têm a promessa de apoio dos Estados Unidos, que no início da semana anunciaram o envio de mais 3 000 soldados para bases na Europa Oriental
Mantida a viagem, Bolsonaro se colocará voluntariamente no meio de uma disputa entre dois gigantes mundiais. Pior: o presidente corre o risco de, ao se encontrar com Putin, passar o recado de que o Brasil se alinha à Rússia na contenda. Não é boa ideia sob nenhum ponto de vista, principalmente o econômico. Os Estados Unidos — que hoje são o segundo principal parceiro comercial do Brasil, considerando exportações e importações, enquanto a Rússia ocupa a 16ª colocação (veja o quadro) — já fizeram chegar ao Itamaraty seu desconforto com a possibilidade de Bolsonaro insistir na agenda com Putin. “Não conheço na história da diplomacia uma viagem tão inoportuna como esta”, diz Rubens Ricupero, diplomata de carreira que já ocupou os cargos de embaixador do Brasil em Washington e de subsecretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com Ricupero, a viagem à Rússia, se ocorrer, superará qualquer desatino diplomático já cometido na gestão Bolsonaro. “Até então, os erros só repercutiam no Brasil, não havia repercussão mundial. Ninguém prestava atenção no que Bolsonaro fazia ou deixava de fazer com a Argentina, nas declarações sobre (o ditador chileno Augusto) Pinochet ou a Venezuela. Passavam despercebidas. Mas essa viagem não. Dada a gravidade da situação na Ucrânia, ninguém compreenderá por que ele vai para lá neste momento.”
Apesar de seu notório alheamento em determinados assuntos, Bolsonaro mostrou ter consciência dos riscos que ele e o país correm. Na última segunda-feira, o presidente lembrou numa entrevista que o Brasil é pacífico e, em uma tentativa de erguer um cordão de isolamento imaginário, afirmou que não tratará da tensão envolvendo Rússia, Ucrânia e Otan. “Obviamente, se esse assunto vier à pauta, será pelo presidente russo, não pela nossa parte. Queremos é cada vez mais integrar com o mundo todo na relação comercial e poder colaborar, no que for possível, para a paz mundial.” Quando assumiu a Presidência, Bolsonaro dizia que teria como parceiro preferencial os Estados Unidos. É bem verdade que, naquela época, os americanos eram governados por Donald Trump, a quem o ex-capitão fazia de tudo para emular. Os tempos e as justificativas agora são outros. “Temos necessidade de fertilizantes, pois grande parte de nossas reservas de fosfato está em áreas de preservação ambiental, o que impossibilita o uso delas, e carecemos de importação. E o Brasil pode fazer negociação grande de combustível, petróleo e gás natural com a Rússia ”, afirma o deputado David Soares (DEM-SP), presidente da Frente Parlamentar Brasil-Rússia e aliado de Bolsonaro.
A análise do parlamentar peca ao desconsiderar que a viagem não tem um aspecto só comercial. Muito pelo contrário. O ex-embaixador Sergio Amaral destaca que Brasil e Rússia têm relação antiga e fazem parte do Brics, grupo que reúne ainda China, Índia e África do Sul. Em outras situações, uma missão oficial seria algo natural, mas não em meio a uma tensão que pode resultar em guerra. “Nesta circunstância é difícil evitar que essa visita seja interpretada como um gesto de simpatia e até solidariedade com Moscou”, diz Amaral. Já Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington e Londres, alerta para o fato de que o Brasil pode acabar se envolvendo, ainda que involuntariamente, numa disputa que não lhe diz respeito: “O risco existe. Imagina que Bolsonaro está em Moscou, e a Rússia ataca a Ucrânia. A visita pode ser interpretada como apoio”. Barbosa lembra de uma regra básica: sempre que possível, o país precisa manter equidistância das contendas externas para resguardar os próprios interesses.
No início do ano, o Brasil assumiu uma cadeira não permanente no Conselho de Segurança da ONU. Se a questão das tropas na fronteira com a Ucrânia entrar na pauta, o país terá de se posicionar sobre o tema. Isso, por si só, deixa o Brasil mais exposto internacionalmente. A viagem de Bolsonaro agravará essa exposição, quando a meta é justamente reduzi-la. Por enquanto, a agenda está mantida e prevalece no entorno presidencial a alegação de que o cancelamento poderia ser interpretado pelos russos como uma descortesia e implicar o esvaziamento de acordos e transações bilaterais. “É uma armadilha para a imagem externa de Bolsonaro, que se notabilizou pela crítica a Joe Biden (presidente dos Estados Unidos) e por certo tom de enfrentamento às organizações internacionais, mas também uma armadilha para sua imagem interna. Para o grupo mais radicalizado que apoia o presidente, sucumbir às pressões do presidente democrata dos Estados Unidos é demonstração de fraqueza”, diz Guilherme Casarões, professor da FGV e especialista em relações internacionais.
Em conversas reservadas, ministros e políticos do governo alegam que Bolsonaro deveria se concentrar na agenda interna, considerada essencial para sua reeleição, e não atravessar o mundo para pisar numa casca de banana em outro continente. O presidente não parece disposto a mudar de ideia. Na sua comitiva, por enquanto, não haverá vaga para os ministros políticos, mas apenas para os ministros militares, como Augusto Heleno e Braga Netto. Até nisso a viagem causa estranheza.
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