Grupos antivacina vendem certificados falsos via Telegram
Foto: Metrópoles/Arte: Carla Sena
Aproveitando-se de brechas de segurança do aplicativo governamental ConecteSUS e da descrença de grupos antivacina na ciência, um mercado ilegal para venda da certidão vacinal circula livremente no Telegram. Os documentos falsificados são anunciados por até R$ 500 no aplicativo de mensagens.
Durante três semanas, a reportagem do Metrópoles conversou com vendedores que anunciam “aplicações” de vacinas contra a Covid-19 e sustentam registros feitos na plataforma do ConecteSUS. Com valores diferentes para número de doses, e contemplando também pais que não querem vacinar seus filhos, esses usuários vendem a promessa de uma “imunização” fictícia para aqueles que desejam emitir a certidão de imunização pelo aplicativo.
Um dos vendedores explicou que o esquema é feito por meio da Unidade Básica de Saúde (UBS) em que trabalha. Ao pedir o Cadastro Nacional de Informações Sociais (Cnis) do interessado, o suspeito afirma que pode registrar a dose no sistema ao mesmo tempo em que descartará uma vacina contra a Covid-19.
Oficialmente, o Ministério da Saúde informou não ter sido notificado sobre casos de comercialização do certificado vacinal. O Metrópoles apurou com uma fonte da pasta, no entanto, que o modus operandi é totalmente possível.
O Brasil possui mais de 38 mil salas de vacinação, além de hospitais e Unidades de Pronto Atendimentos (UPAs) com acesso ao sistema que registra os imunizantes. O governo federal precisa dar acesso à plataforma a servidores dessas unidades, lá na ponta, para que as doses sejam cadastradas.
“Se uma pessoa está agindo para vender esse certificado no posto de saúde e tem uma credencial, ela pode lançar a vacinação e não vacinar a pessoa. Isso é possível de ser feito tranquilamente”, confirmou a fonte do Ministério da Saúde.
O mesmo modus operandi foi usado, por exemplo, na alteração de dados de políticos e famosos, como Manuela D’Ávila, Átila Iamarino, Felipe Neto, Felipe Castanhari e Nyvi Estephan, no sistema do SUS.
Valores
O anúncio da venda de certificado falso de vacinas é feito livremente em grupos de pessoas que são contra os imunizantes. Em meio a publicações de notícias falsas sobre as vacinas disponíveis contra a Covid-19, pipocam comunicados que vendem o “passaporte vacinal”.
Alguns são mais discretos e pedem para que os interessados entrem em contato por mensagem privada. Outros chegam a comparar a obrigatoriedade da vacina à perseguição aos judeus feita pelo regime nazista de Adolf Hitler.
Os preços variam no mercado paralelo. Quanto mais doses a serem cadastradas no sistema, menor é o valor de cada dose. A variação também existe para doses “aplicadas” em crianças e adolescentes, público mais recente a ser integrado na campanha vacinal — para eles, as doses são mais caras.
Em um anúncio, o preço para uma dose em adultos é de R$ 300, duas doses são R$ 400, e o valor com a dose de reforço é de R$ 500. Em crianças, a quantia a ser desembolsada é de R$ 400 e R$ 500, para uma e duas doses. A escolha por qual será o imunizante cadastrado é livre. No anúncio, o vendedor promete: “Você escolhe a quantidade de doses, escolhe o veneno entre Pfizer e Coronavac. E assim que eu lançar no sistema do SUS, falo para você checar [sic]”.
Não é possível saber, contudo, se o esquema realmente funciona ou é apenas um golpe, uma vez que, se o Metrópoles avançasse com a negociação, poderia estar cometendo um crime.
“Um no meio da multidão”
Um dos vendedores contatados pela reportagem, identificado apenas como Azevedo, explica que o esquema é feito a partir da UBS onde trabalha. Com o cadastro do ConectSUS do comprador em mãos, o golpista acrescenta as doses compradas no sistema do usuário, como se ele tivesse sido imunizado naquela unidade de saúde.
“Faço tudo certo, doses, lotes, vacinadores reais… Lançado da minha UBS em Teresina [no Piauí]. Não importa onde você mora, pois pode tomar a picada em qualquer lugar do Brasil, inclusive em viagens”, explica. Com o cadastro de imunizantes feitos, as doses reais de vacina seriam, segundo o vendedor, descartadas.
“Só este mês de janeiro aqui na minha região de trabalho das UBS que cubro, foram mais de 100 mil picadas verdadeiras. Você será um no meio da multidão, sem perigo algum, são doses reais, lotes reais e vacinadores reais, você veio até a unidade, talvez em viagem, e recebeu a picada. A dose é descartada, seu único registro será dentro do SUS“, argumenta.
Um outro vendedor anuncia um método diferente. Identificado pelo nome Seu Passe, o usuário afirma que consegue fazer um certificado digital, em formato PDF, e aproveitar uma brecha de segurança da plataforma. Após enviar para o comprador, o documento conseguiria ser validado pelo aplicativo do ConectSUS, via QR Code ou código de segurança. “Então, onde você for e checarem, seu certificado vai dar como um certificado válido”, diz.
A falha de segurança no aplicativo já foi identificada e é de conhecimento do governo federal, que afirmou ter resolvido o problema desde 24 de janeiro deste ano. A brecha permitia a validação do certificado de vacina contra a Covid-19 por meio da leitura de um QR Code, relativo a qualquer documento.
Investigação internacional
Em janeiro deste ano, a Check Point Research (RCP, na sigla em inglês) alertou para um ressurgimento de testes falsificados e certificados de vacinação em meio a uma nova onda de infecções causadas pela variante Ômicron da Covid.
A RCP também descobriu forte aumento no valor anunciado pelos certificados.
Logo após o anúncio inicial dos certificados de vacinação, em 2021, os documentos eram normalmente vendidos entre US$ 75 e US$ 100. Neste último despertar do mercado paralelo, no começo deste ano, esses mesmos certificados passaram a custar de US$ 200 a US$ 600, representando aumento de até 600%.
“Os governos precisam se unir rapidamente para combater esse último aumento no mercado paralelo, ou correm o risco de ver documentos falsificados aumentarem em número nas próximas semanas e meses”, alertou Liad Mizrachi, especialista em segurança da Check Point Software.
Outro lado
O Ministério da Saúde e a Polícia Federal foram procurados na quarta-feira (9/3) para informar se monitoram a venda ilegal de certificados falsos de vacina.
O Ministério da Saúde informou que o registro de imunização contra a Covid-19 é realizado nos postos de vacinação de todo o país por operadores credenciados. “Em caso de irregularidades e denúncias, o gestor local pode realizar o bloqueio da credencial do agente responsável e notificar o Ministério da Saúde para que o acesso do usuário seja suspenso permanentemente. Até o momento, a pasta não foi notificada formalmente sobre casos de comercialização do certificado vacinal”, assinalou o órgão.
A PF não respondeu.
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