
Gestor de organização militar teme golpismo nas Forças Armadas
Foto: Wenderson Araujo/Valor
Primeiro presidente do Instituto General Villas Bôas e hoje à frente do seu Conselho Editorial, o general Marco Aurélio Vieira contesta a visão, que ganhou adeptos ao longo do governo Jair Bolsonaro, de que as Forças Armadas devem exercer o papel de moderador dos poderes civis.
O general vê na posição, frequentemente externada pelo presidente da República em seus embates com o Supremo Tribunal Federal (STF), um risco para a politização dos quartéis.
Em recente artigo em “O Globo” (“A espada suspensa”, 5/3), Vieira se insurge contra “conselheiros” que insistem no uso das Forças Armadas contra as “vulnerabilidades da democracia”, citando o marechal Humberto Castello Branco, primeiro presidente da ditadura (“Eu os identifico a todos. São os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias ao poder militar”).
Ao Valor, o general disse não se referir a militares que ocupam posições no Palácio do Planalto, mas a setores da sociedade que pressionam por intervenção armada. Não vê riscos nas eleições, mas diz que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve tornar pública a resposta do Exército ao relatório da instituição sobre a segurança das urnas eletrônicas.
Marco Aurélio Vieira defende a permanência do general Joaquim Silva e Luna na presidência da Petrobras. Diz que se trata de um bom gestor, já testado em Itaipu, e que, se é alvo, é porque talvez não esteja atendendo ao “interesse político”.
Defende tanto a ida do ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto, para a vice de Bolsonaro, quanto a Esplanada militarizada de Bolsonaro. Para o general Marco Aurélio Vieira, os militares da reserva que lá estão, escolhidos por um presidente eleito pelo voto, têm tanta legitimidade quanto os “guerrilheiros” que ocuparam o governo a partir da Nova República, inclusive aqueles que lá chegaram pelo voto.
Formado na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1973, na mesma turma do general Eduardo Villas Bôas, Marco Aurélio Vieira chegou a general de Divisão do Exército. Entrou para a reserva há 11 anos depois de dirigir o Ensino Superior Militar. Fora dos quartéis, foi diretor executivo de operações dos Jogos Olímpicos do Rio. No governo Bolsonaro chegou a ser secretário especial do Esporte mas deixou o cargo em menos de três meses. A seguir, a entrevista concedida, por telefone, ao Valor:
Valor: As Forças Armadas têm sido convocadas a atuar como um poder moderador dos Poderes da República. O senhor concorda com isso?
Marco Aurélio Vieira: É um equívoco. É a forçação de barra de uma ideia antiga. Desde a década de 1930, reforçamos o espírito militar no país numa linha distinta daquela adotada pelos países vizinhos, que se guiavam pela ideia de promover um caudilho. Desde o Império, a preocupação do Exército é a modernização do Estado no combate à corrupção, que foi o ideário do tenentismo. Um dos arquitetos do espírito militar, general [Pedro Aurélio] Góes Monteiro [ministro da Guerra de Getúlio Vargas], já dizia que o Exército é um instrumento da política mas não pode fazer política. Se fizer, podemos ter facções dentro das Forças Armadas e essas facções vão fazer com que haja cisão da disciplina e da hierarquia. O Exército não pode se arvorar a ser poder moderador. Isso é coisa de quem quer levar a política para dentro dos quartéis.
Valor: Quem mais verbaliza essa ideia de Forças Armadas como poder moderador é o presidente da República. É essa a intenção?
Vieira: As pessoas usam expressões a seu favor. É da política fazer isso. Um dia dizer que o Exército é uma coisa, outro dia outra coisa. São os embates da política que levam a isso. Mas quaisquer abusos ou atos entendidos como inconstitucionais por parte de um poder deveriam ser coibidos pelos outros dois poderes, que têm a responsabilidade constitucional para tanto. Esta não é uma atribuição das Forças Armadas. A omissão nesse sentido é decisão de confortável conivência política e deixa aquele poder que não usa suas próprias ferramentas de freios e contrapesos democráticos sem argumentos para criticar ou descumprir as decisões do outro poder.
Valor: No seu artigo o senhor falou de “conselheiros” que insistem no uso do poder das Forças Armadas contra as vulnerabilidades da democracia? A quem o senhor se referiu? Aos ministros militares que estão no governo?
Vieira: A democracia é frágil por excelência, por definição. A democracia é vulnerável a ela mesmo pela possibilidade de todos colocarem suas ideias a qualquer momento e circunstância. Mas a democracia tem que se defender com suas próprias armas. Essas liberdades facilitam reações fora do controle da democracia. Quando se tem essas fragilidades, e cito o clássico sistema dos Três Poderes, são esses poderes que barram os demais e se interpõem entre si. E não as Forças Armadas. Temos tradição antiga no Brasil de recorrer a instituições que dispõem de credibilidade. O povo recorre quando a democracia está ameaçada a quem poderia, teoricamente, salvá-la. É a ideia recorrente de que, em momento de perigo, o homem precisa de Deus e de soldados
Fazer das Forças Armadas um poder moderador é querer levar a política para dentro dos quartéis”
Valor: O senhor referiu-se aos conselheiros militares do presidente?
Vieira: Não. Me referi a pessoas que têm boas intenções mas vão para a rua incitar a intervenção das Forças Armadas. Antes do presidente ser quem ele é hoje já faziam isso. Desde os tempos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Dizem: ‘Por que vocês não tomam conta de tudo? Tem sempre os exacerbados que acham que dá para tomar o poder como quem vai na esquina e já volta. Outra coisa são as conquistas até hoje. Temos uma senhora democracia. Vamos atacar essa democracia porque A contrariou B porque foi contrariado um princípio? Vale a pena atacar um Poder por isso. Isso não é coisa dos conselheiros do presidente. É uma parte da sociedade que pensa assim.
Valor: Quem são as vivandeiras de hoje?
Vieira: Temos industriais, sindicatos, religiosos, gente que pensa antidemocraticamente. Existem grandes interesses outros que têm esse poder de pressão.
Valor: O governo tem a Esplanada dos Ministérios mais militarizada da história. Ainda que a esmagadora maioria seja da reserva, foi um equívoco ocupar o governo dessa forma?
Vieira: A Esplanada não está militarizada. Não foi a instituição Forças Armadas que entrou no governo foram pessoas, a maior parte dos quais da reserva.
Valor: Mas há militares da ativa, como foi o caso do general Eduardo Pazuello, em funções centrais como o Ministério da Saúde…
Vieira: Mas não estava ali representado o Exército. São pessoas que entram para ocupar funções técnicas. E não é de hoje. Passarinho ocupou ministério [o coronel Jarbas Passarinho foi governador do Pará, senador e ministro da Justiça no governo Collor]. Essas pessoas de origem militar ocupam funções no governo que, na época do PT, foram exercidas por guerrilheiros. Na Nova República ascenderam os guerrilheiros. Agora prevalecem militares. Agora temos gente competente e de confiança. Fala-se que há 6 mil militares, mas colocam policiais militares nessa conta.
Valor: A principal das guerrilheiras, a presidente Dilma Rousseff chegou à Presidência da República pelo voto. Isso não faz diferença para o senhor?
Vieira: Ela foi eleita pelas regras vigentes na democracia e os militares que lá estão foram escolhidos por quem foi eleito. Trabalhar com quem se confia é democrático. E há cargos que podem ser confiados a militares
Valor: Mas quem foi eleito pelo voto não tem mais legitimidade no exercício do poder?
Vieira: Os dois são legítimos. O voto não atribui mais legitimidade a nada, apenas aos cargos políticos não aos técnicos. José Dirceu participou do governo e teve um governador de Minas Gerais [Fernando Pimentel] que participou de assalto a banco.
Valor: José Dirceu chegou à Câmara dos Deputados pelo voto e Fernando Pimentel também foi eleito governador pelo voto…
Vieira: E esta não é a única condição para exercer o poder
Silva e Luna é um administrador aplicado; pode ser que não esteja atendendo ao interesse político”
Valor: Tem sido cultivada entre militares que estão no governo a apreensão de que um presidente de oposição que venha a ser eleito revogue a reforma do sistema de pensões promovida por este governo. O senhor acha que essa perspectiva colabora para a tensão hoje existente?
Vieira: Isso é discurso para fazer algum tipo de cortina de fumaça para assuntos mais importantes aparecerem. A possibilidade é tema de discussão. Ameaças e possibilidades são do jogo político. E fazem com que a dinâmica política ocorra. São provocações da política. Quando dizem que se [o ex-presidente] Lula entrar vai rever Lei da Anistia isso é provocação política. Você aceita ou não. É do jogo político. Não se está lidando aí com a verdade.
Valor: Como o senhor vê a desconfiança alimentada pelo presidente da República contra a segurança das eleições?
Vieira: É uma questão pessoal do presidente. Uma pessoa no cargo público tem o direito de falar o que quiser e ser responsabilizado por suas palavras. Só posso dizer que é o que ele pensa e está externando. As outras instituições devem conversar com ele. Isso não é nenhum crime. É jogo político.
Valor: Como a área de cibersegurança do Exército analisa o relatório feito pelo Tribunal Superior Eleitoral sobre a segurança da urna eletrônica?
Vieira: A área de cibersegurança tem uma equipe encarregada de acompanhar a segurança das eleições. Recebeu o relatório e já se manifestou. O TSE respondeu e estão dialogando. Isso vai fazer com que as partes se entendam. Vai haver um entendimento com a participação de quem foi convidado a tomar parte disso.
Valor: Mas por que a resposta do Exército não foi tornada pública?
Vieira: Cabe ao TSE divulgá-la. Não falo em nome do Exército. Mas a posição é que o voto é secreto, mas a apuração é pública. Como também é a discussão. A posição do Exército deve ser tornada pública.
Valor: A contestação do resultado eleitoral teria apoio das Forças Armadas?
Vieira: Só trabalho com fatos. E não vejo fato nenhum para que qualquer coisa aconteça. Está tudo certinho, as instituições funcionando. Deve-se trabalhar com planejamento e avaliar as possibilidades e ocasiões em que os problemas podem acontecer
Valor: Deve haver segurança que o resultado eleitoral, seja ele qual for, não deve suscitar aventuras militares?
Vieira: Não trabalho com hipótese. Até agora nada nos leva a mudança na regra de jogo. Não vejo nenhum tipo de ameaça às regras do jogo.
Valor: Como o senhor vê a possível ida do ministro da Defesa, general Walter Braga Netto para a Vice de Bolsonaro?
Vieira: É uma escolha política e o presidente escolhe quem ele quiser. A gente não pode achar nada. Quem ele escolher está escolhido, assim como o outro candidato deve escolher um vice também. É muito difícil criticar escolha de cargos. Tem que criticar resultado de governo.
Valor: Braga Netto será capaz de fazer o contraponto a Bolsonaro, como o general Hamilton Mourão o fez?
Vieira: Braga Netto é um homem altamente capacitado, excelente profissional e com uma capacidade política acima da média. Como interventor na segurança pública do Rio atuou como algodão entre cristais. Trabalhou como governador sem ser governador. E foi capaz de conciliar a questão administrativa com a política de segurança pública. Depois foi ministro da Casa Civil e agora ministro da Defesa. Tem cabedal político que o possibilita a exercer qualquer cargo
Valor: E sua substituição na Defesa pelo comandante do Exército, general Paulo Sérgio Oliveira, o que lhe parece?
Vieira: As substituições nas Forças Armadas são naturais. Não existe uma conotação política. São substituições baseadas na hierarquia e antiguidade. Qualquer general do Alto Comando tem condições de assumir a Defesa. Vai depender do momento político e da situação familiar do escolhido. Como aconteceu com o ex-comandante da Marinha, [Eduardo Bacellar] Leal Ferreira, que poderia ter ido para a Defesa, mas preferiu ir pra o Conselho da Petrobras.
Valor: Mas a troca no comando do Exército seria a terceira em menos de quatro anos, uma rotatividade que só perde para a do governo João Goulart. Não é ruim que haja tanta troca?
Vieira: Governos são instituições dinâmicas que enfrentam situações inesperadas e precisam ter agilidade nas decisões. Esta guerra na Ucrânia, por exemplo, ninguém esperava. Muitas mudanças já devem ter acontecido nos comandos militares americano e alemão por que não se previu esta guerra. É preciso dinamismo para manter viva a capacidade de interação. Não vejo com maus olhos a troca.
Valor: E como o senhor vê a posição brasileira na guerra da Ucrânia? Não houve um alinhamento desnecessário do presidente?
Vieira: A relação entre os países tem que ser pragmática. A posição diplomática foi correta. E está se mostrando correta. Acontece que hoje temos uma pressão grande para demonizar um lado e outro e essa percepção tem que ter um tempo para que se concretizem fatos e pressões. A situação ainda não está bem definida. Tem a China por trás, os americanos ao lado da Otan e uma Inglaterra que não se posiciona. E muitas nuances que não se definiram. Não estamos envolvidos nisso, mas vamos ver o desenrolar os acontecimentos. Os países têm interesses que não podem ser jogados fora por conta de arroubos. São os interesses dos países que têm que ser privilegiados.
Valor: Houve açodamento de Bolsonaro?
Vieira: O Estado brasileiro está bem posicionado. As atitudes e palavras do presidente são trazidas à tona para atacá-lo. Em três anos de governo nunca vi ninguém elogiando o presidente na imprensa. Alguma coisa de boa ele fez. Então se vemos atitudes e palavras que nunca são elogiosas, nos apegamos ao desempenho do Estado, que está bem posicionado.
Valor: Como o senhor vê a pressão e as críticas do presidente e dos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, contra o presidente da Petrobras, general Joaquim Silva e Luna?
Vieira: O general Silva e Luna chegou à Petrobras depois de um desempenho excelente em Itaipu. É um engenheiro por formação, um indivíduo que se aplica administrativamente e que pode ser que não esteja atendendo ao interesse político. Cabe ao administrador gerenciar isso. Se o general for bom político, cabe a ele demonstrar vencer e demonstrar que estava certo nos seus argumentos. A política maltrata aqueles que estão certos. É uma pressão política e o presidente da Petrobras vai ter que resistir às pressões.