Pastor presbiteriano como Milton Ribeiro critica mistura de política e religião

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Foto: Reprodução

O pastor Valdinei Ferreira é conhecido no meio religioso por seu posicionamento crítico em relação ao envolvimento dos evangélicos com a política. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, ele está à frente da mais antiga igreja protestante da capital paulista, a Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, de 1865. É um ramo diferente do presbiterianismo seguido pelo ministro Milton Ribeiro, que foi flagrado pela Folha de S. Paulo dizendo em um áudio que daria privilégio a dois pastores evangélicos na liberação de verbas a pedido do presidente Jair Bolsonaro. Para Valdinei, o episódio é resultado de um quadro de captura da religião pela política.

O senhor, como o ministro Milton Ribeiro, é presbiteriano. Como está vendo esse episódio dos pastores exercendo influência no MEC? Acho que é parte desse quadro de apodrecimento da vida política e religiosa, infelizmente. Com as relações entre religião e política feitas de maneira errada, de uma forma que não beneficia nem uma coisa, nem outra.

Isso surpreende o senhor? Não me surpreende que haja essa lógica de misturar a religião e o Estado, porque é um jeito de boa parte dos evangélicos que estão na política atuarem. Me surpreende o reverendo Milton Ribeiro, que é um protestante histórico, e o protestantismo histórico sempre foi zeloso por separar as fronteiras entre Igreja e o Estado. A Igreja evangeliza e o Estado, que é laico, faz política pública. Isso é muito caro para nós porque o protestantismo só se instalou no Brasil quando a Igreja Católica era a religião oficial do Estado. Agora parece que foi capturado também, infelizmente, por esse (ímpeto) de usar o poder para favorecer uma determinada religião.

O Milton Ribeiro demonstrava esse ímpeto antes de ir para o governo? O reverendo Milton é um neófito em política. Como estreante, ninguém esperava que ele tivesse esse tipo de experiência (política), mas ele tem alguma vivência na educação e toda a vivência religiosa. O que não se espera é que um religioso formado em uma Igreja que sempre defendeu a separação entre Igreja e Estado caia nesse tipo de atitude. É uma incoerência da parte dele.

Ele tem falado muito de assuntos como ideologia de gênero. Ele já fazia esse discurso antes? Minha tese sobre esse tipo de mobilização é a seguinte: seja o Marco Feliciano ou as vozes mais estridentes da política evangélica, que estão no Congresso há muito tempo, eles sabem que a roda da História não vai girar para trás. Não vão fazer uma legislação para enquadramento comportamental das pessoas dentro de uma visão religiosa. Mas essas pautas são mantidas e eles dão visibilidade porque elas são aglutinadoras e mobilizadoras do público interno, de eleitores. A jogada é: você faz barulho em torno disso, cria pânico moral dizendo “olha, estão avançando, vão destruir a família” e, no dia-a-dia, tocam a política do Centrão, com as verbas distribuídas com interesses regionalizados ou com os veículos de comunicação e rádios evangélicas. É um jogo de cena: para o público interno você justifica sua presença na política e faz a velha política do toma-lá-dá-cá.

Mas isso é uma regra entre políticos religiosos? Talvez haja exceções, mas as vozes mais estridentes que levantam a pauta moral, ao meu ver, operam nessa duplicidade. Você precisa fazer esse barulho, como se o político fosse o salvador da moralidade tradicional. Mas isso abre portas para manter a velha política e concessões, ou seja, “pelo menos não estão indo contra a família, apoiando a pauta anti LGBT” e por aí vai.

Mas o Centrão agora parece que quer tomar conta desse feudo também. O Centrão sabe que a História não retrocederá. Não entrarão nessa pauta comportamental. A aliança com os evangélicos funciona até onde interessa a eles.

Milton Ribeiro representa a Igreja Presbiteriana? A Igreja Presbiteriana teve uma estratégia de implantação no Brasil conhecida como evangelização pelo alto. Houve a criação do Colégio Mackenzie, com a ideia de receber os filhos da elite brasileira e, com isso, convertê-los e evangelizar o país. Isso nunca funcionou muito bem, porque as pessoas foram ao colégio e não se converteram. Essa ideia de que em algum momento você possa ocupar uma posição no Estado e com ela favorecer determinados valores cristãos é uma visão da Igreja Presbiteriana. Se usa muito a expressão cosmovisão cristã, que funciona quase como uma senha. Mas há um grupo que de certa forma está despreparado para entender o mundo plural, (no qual) você tem que expressar os valores cristãos dentro de uma pluralidade, e não é necessariamente uma ameaça à sua visão cristã. É uma ala fundamentalista, que acaba se encontrando com os grupos pentecostais e neopentecostais. Embora sejam menos estridentes, acabam tendo alguma afinidade. Acho que esse lamentável episódio demonstra isso.

Mas há uma divergência histórica com os pentecostais e neopentecostais, que jocosamente afirmam que presbiterianos não são evangélicos “de verdade”. É uma aliança de ocasião? Nunca foi uma relação pacífica, amistosa. É curioso que tenham se encontrado na política agora. Caso perguntem aos presbiterianos sobre os pentecostais, também falarão de modo jocoso sobre o lado exagerado e da emoção de suas manifestações. (As alas radicais) Se encontraram sob a bênção do fisiologismo da política brasileira.

Essa ala fundamentalista é representativa? Milton Ribeiro fazia parte dela? Sim, é muito representativa na Igreja Presbiteriana do Brasil. É o que predomina. Eu estimaria de 60 a 70% da Igreja. Faz sentido (que ele represente os interesses dessa ala). Para entender historicamente, a Igreja Presbiteriana do Brasil tem muita ligação com a maçonaria, uma sociedade muito ligada ao tráfico de influência e de relações com o conservadorismo. Essa ligação maçônica com os presbiterianos também está na origem dessa postura mais conservadora e fundamentalista. Estou falando em termos de influência cultural, não de conspiração.

Então existe uma lógica de ocupação de espaço. Por isso havia essa aliança com os pastores? Funciona assim: “Desde que esteja fazendo Igreja, tudo bem”.

Qual a repercussão no meio presbiteriano? Muito negativa. Primeiro, os presbiterianos já receberam muita exposição com o André Mendonça e com o Milton Ribeiro, que foi indicação do próprio Mendonça, pois foi seu pastor na adolescência. Eu acho que isso causa bastante perplexidade. Esse grupo certamente vai receber críticas internas. Há grupos que discordam dessa condução fundamentalista da Igreja. Eu sou de uma outra denominação presbiteriana, a minha é a Primeira Igreja Presbiteriana em São Paulo, a segunda no Brasil. Em 1903 nós rompemos com a Igreja Presbiteriana Brasileira e criamos a Igreja Presbiteriana Independente, pois não queríamos a influência dos Estados Unidos e da maçonaria. E criticamos severamente o uso de títulos como pastor, bispo ou padre na campanha eleitoral, em nome da bandeira da separação do Estado e da Igreja. Podemos falar coletivamente em torno de pautas públicas, mas a instrumentalização que a política faz da religião é muito ruim.

Esse público apoiou Bolsonaro. Há alguma tensão com o avanço da esquerda? É um público difícil de ser capturado pela esquerda. É muito resistente. Parte dele flertava com Sérgio Moro (Podemos), mas ele não está decolando nas pesquisas.

O Globo