Começam a aparecer vítimas da decisão do STJ sobre planos de saúde

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Foto: Reprodução

Meu filho tem 10 anos e sofre de autismo severo. Ele não fala, mas sabe se comunicar muito bem — do jeito dele. Nem sempre foi assim. A principal mudança ocorreu em 2020, quando meu marido e eu ganhamos na Justiça o direito de realizar o tratamento completo pelo plano de saúde. Essa conquista, no entanto, está ameaçada depois que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que apenas os procedimentos listados e com indicação determinada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar deverão ser pagos pelas operadoras.

Toda semana, o Pedro faz uma bateria de terapias essenciais para pessoas do espectro autista, incluindo atendimento psicológico, terapia ocupacional, terapia psicomotora, musicoterapia e fonoaudiologia. Ele também toma dois medicamentos à base de canabidiol, um puro e outro com THC, que são importados dos Estados Unidos. Se fossem pagas integralmente por nós, as terapias custariam entre R$ 5 mil e R$ 6 mil por mês, além dos R$2.500 de cada um dos fitoterápicos, que duram, no máximo, 45 dias.

Não temos esse dinheiro. Sou psicopedagoga e meu marido é professor de ensino fundamental e médio. Nosso dinheiro nunca foi suficiente para fornecer o tratamento completo que o Pedro demanda, por isso recorremos ao plano de saúde. Antes da liminar da Justiça, tínhamos que priorizar as terapias, e como nosso filho é uma criança autista não verbal, entendemos que o essencial era o tratamento psicológico e de fonoaudiologia, para ajudá-lo na parte da comunicação.

Pessoas com autismo têm uma desordem sensorial muito grande. Isso significa que, para eles, os sons chegam muito alto e a sensação tátil é muito intensa, por exemplo. E são essas sensações desorganizadas que, muitas vezes, causam as crises em que eles agridem a si mesmos ou outras pessoas. A terapia ocupacional é essencial para integrar toda essa sensorialidade do autista, mas não tínhamos como pagar do nosso bolso.

O canabidiol também é uma medicação com efeito profundo nessa parte cognitiva. O Pedro é uma criança que se comunica através do corpo e, muitas vezes, isso vem de forma agressiva, como quando ele está tentando dizer que não gostou de algo ou que gerou frustração. Ele também é muito ansioso e extremamente agitado — o sensorial dele faz com que se movimente o tempo inteiro. O canabidiol atua justamente nessas características, reduzindo a ansiedade e a agressividade, além de facilitar a interação social.

A melhora dos últimos anos é visível e os ganhos foram muito maiores depois que pudemos pleitear um universo maior de terapias através do plano de saúde. Antes, meu filho tinha muita dificuldade de atender ao que a gente pedia. Eu dizia “Pedro, apaga a luz”, mas essa frase não significava nada para ele. Com as terapias integradas, ele começou a entender todos os nossos comandos — quanto mais organizada a criança com autismo fica, mais ela consegue entender o que está sendo verbalizado para ela.

Hoje o Pedro tem um nível de compreensão inédito para ele. Também é muito carinhoso, beija, abraça, faz carinho, tem amigos e adora passear. Antes da pandemia, frequentava a escola — está no quinto ano no Colégio de Aplicação da UFRJ —, ia a peças de teatro e eventos. Perder o acesso a essas terapias significa retroceder, porque quando a gente alcança uma melhoria dentro do autismo, não significa que está consolidado. Se você interromper a terapêutica do dia para a noite, a probabilidade de a criança involuir é altíssima.

E a decisão do STJ não vai afetar apenas os autistas. A taxação do rol alcança um universo enorme de pessoas com deficiência, mas também de pessoas com doenças raras e doenças crônicas, que muitas vezes dependem de remédios muito caros e que não têm condições de comprá-los. O que se fazia nesses casos era acionar a Justiça para sermos atendidos pelo plano de saúde, com base no entendido de que o rol é exemplificativo [ou seja, permite ao usuário de plano de saúde discutir em instâncias administrativas e judiciais pedido de cobertura de procedimento não incluídos na lista pela ANS e de uso diferente do inicialmente proposto pelo regulador nas diretrizes de utilização]. Mas isso agora se tornou inviável, para não dizer impossível.

É importante lembrar ainda que muitas crianças, autistas ou não, também dependem do canabidiol para controlar as crises de convulsão, que antes chegavam a ocorrer até 100 vezes ao dia. Eu faço parte de grupos de pais cujos filhos são usuários de canabidiol e que entraram na Justiça, obviamente, para ter acesso a essa medicação, que é muito cara. Mas agora eles não sabem o que fazer. Alguns estão completamente desesperados, porque sabem que o filho vai ficar sem medicação e voltar a convulsionar o dia inteiro.

Eu também estou sem chão. Quando vi que o rol taxativo tinha sido aprovado, sentei e chorei. Não imaginava que isso pudesse acontecer, considerando a importância da pauta e de tudo que está em jogo. Estamos falando de milhares de pessoas que dependem de algumas medicações, tratamentos e equipamentos não só para reabilitação, mas para sobrevivência. E são itens caríssimos, que a grande maioria não terá dinheiro para bancar.

Usar saúde suplementar é indispensável. O Sistema Único de Saúde existe, graças a Deus, mas sozinho não dá conta. Terapias para pessoas com autismo, por exemplo, simplesmente não existem na esfera pública. Você tem um ou outro centro de saúde disponível, além dos Centros de Atenção Psicossocial, que não foram pensados para pessoas com autismo, e sim para crianças com psicose, mas que hoje também atendem crianças com autismo, embora o autismo não esteja no campo da psiquiatria.

Apesar da angústia, também tenho esperança, porque ainda cabe recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Sabemos o quanto está em jogo para a gente, mas o quanto está em jogo também para os planos de saúde. É uma briga enorme. Mas se o desespero existe neste momento, a esperança e a certeza da luta também. Seguiremos, mobilizados, para que essa medida seja revista.

O Globo