Lira cria “sala secreta” para comprar votos
Foto: André Shalders/Estadão
Num corredor sem janelas de um prédio anexo da Câmara funciona o mais novo centro de peregrinações de deputados e assessores atraídos por verbas do orçamento secreto. O presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL), abriu, no segundo pavimento, uma sala com equipe destinada a atender pedidos de emendas voltadas a redutos eleitorais dos parlamentares, especialmente da base aliada do Palácio do Planalto. O espaço é chefiado por uma assessora direta do político alagoano.
A “salinha do orçamento secreto” ocupa o número 135 da ala B do Anexo II, também conhecido como “Corredor das Comissões” entre parlamentares e assessores. É nesse prédio que funcionam colegiados como as comissões de Constituição e Justiça (CCJ), Orçamento e Direitos Humanos, entre outras.
A rotina no novo espaço é agitada. Nas tardes de quarta e quinta-feira, 29 e 30 de junho, a reportagem registrou filas de pessoas aguardando para ser atendidas. Na quinta, o alto movimento contrastava com um Congresso às moscas. Deputados e assessores corriam para liberar as verbas antes do prazo da Lei das Eleições, que determina que os empenhos (autorizações para os pagamentos das verbas) devem ser suspensos a partir deste sábado, 02.
É consenso entre técnicos de órgãos de controle e especialistas em recursos públicos que o orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão, se constituiu numa modalidade de destinação de verbas sem critérios técnicos ou mesmo vínculos com políticas públicas. A liberação dos recursos não é igualitária entre parlamentares e prioriza apenas interesses eleitorais da base do governo. Sem transparência, o dinheiro escapa de fiscalizações.
Embora o orçamento secreto esteja normalizado no Congresso a ponto de ter uma sala própria, a existência deste tipo de emenda está longe de ser uma unanimidade: tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a de número 854, que questiona o dispositivo.
O espaço físico evidencia o poder de Arthur Lira sobre a liberação deste tipo de verba, que soma R$ 16,5 bilhões em 2022. Formalmente destinadas pelo relator do Orçamento, o deputado Hugo Legal (PSD-RJ), os recursos na verdade são alocados a partir de uma negociação entre Leal, Lira e os líderes partidários.
O guia de ramais da Câmara registra que há seis servidores da presidência da Casa despachando na “salinha do orçamento secreto”, descrita na publicação como “assessoria do presidente”. Uma delas é Mariângela Fialek, conhecida entre os deputados pelo apelido de Tuca e considerada uma espécie de “gerente” do orçamento secreto.
Servidora comissionada, Fialek já trabalhou com o ex-senador Romero Jucá (MDB-RR). No governo do ex-presidente Michel Temer (2016-2018), atuou na Secretaria de Governo da Presidência da República. Sob Jair Bolsonaro, Fialek trabalhou no Ministério do Desenvolvimento Regional, na gestão do ex-ministro Rogério Marinho, hoje pré-candidato ao Senado. Chegou à Câmara em março de 2021, e desde então é considerada a pessoa-chave para a gestão do orçamento secreto na Presidência da Casa. Vários dos ofícios de deputados e senadores mudando a destinação de verbas da rubrica são dirigidas a ela, e não ao relator-geral do Orçamento.
“Tem vinte pessoas na minha frente, inclusive oito deputados”, dizia ao telefone uma assessora parlamentar na quinta-feira – o deputado para quem ela trabalhava precisou trocar o município beneficiado por uma parte de suas emendas. Naquele momento, eram sete assessores na fila em frente à porta da sala, e mais cinco sentados nas cadeiras na “recepção” da sala. Alguns deputados também foram diretamente ao local – eles têm prioridade em relação aos assessores.
Na tarde de quinta-feira, a reportagem do Estadão encontrou na sala os deputados Ottaci Nascimento (Solidariedade-RR) e Nelho Bezerra (União-CE). “Na verdade é por causa do período eleitoral (a visita à sala 135). Estamos correndo para entrar na campanha com tudo resolvido”, disse Ottaci à reportagem. Em maio passado, ele foi declarado inelegível pela Justiça Eleitoral por distribuir cestas básicas antes da disputa pela prefeitura de Boa Vista. A defesa do deputado recorreu e alegou se tratar de uma ação humanitária, destinada a ajudar pessoas atingidas pela pandemia de covid-19.
Já Nelho Bezerra destinou suas emendas para ações de cirurgias de catarata e compra de ambulâncias. Ele ressalta que os municípios de sua base eleitoral, no interior do Ceará, não contam com hospitais – por isso a opção pelas ambulâncias. As verbas, porém, vão seguir para o Estado sem levar em conta análises de áreas prioritárias ou da eficácia dos repasses. “Por que, pelo menos assim, as pessoas podem ser socorridas para receber atendimento”, afirmou ele.
Ao aprovar com ressalvas as contas de 2021 do governo de Jair Bolsonaro, os auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) alertaram que as verbas para saúde, em especial, não atendem critérios “objetivos”. Os técnicos ainda identificaram repasses de verbas desproporcionais para redutos de lideranças como Arthur Lira e parlamentares que integram seu grupo ou a base do governo.
A “salinha” começou a funcionar por volta de abril deste ano, mas o movimento se intensificou nos últimos dias. Como mostrou o Estadão, a liberação de recursos do orçamento secreto foi acelerada após a operação da Polícia Federal que prendeu o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro. Ao longo do mês de junho, foram empenhados R$ 5,79 bilhões na rubrica, de acordo com os dados mais recentes disponíveis na plataforma Siga Brasil.
Só nos dias 23 e 24 de junho, que se seguiram à prisão do ex-ministro, foram empenhados R$ 3,2 bilhões das emendas de relator – mais que o total anterior deste ano (R$ 2,5 bilhões). Na terça-feira, 28, após reunir as assinaturas necessárias, a oposição protocolou o pedido de instalação da CPI do MEC no Senado.
A procura na “salinha” é tanta que alguns assessores bateram em outras salas do mesmo corredor perguntando sobre “a sala do RP 9″ – o código representa as chamadas emendas de relator, base do orçamento secreto, dentro do jargão orçamentário.
“Faz parte do dia-a-dia da administração federal conceder recursos para Estados e municípios por meio destas emendas e de outras transferências voluntárias. Então, para tentar evitar que essas emendas tenham um uso eleitoral muito explícito, há essa vedação às transferências eleitorais depois do dia 02 de julho”, explica o advogado especializado em direito eleitoral Renato Ribeiro de Almeida, que é doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador acadêmico da Abradep, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
Segundo o consultor Hélio Tollini, da Consultoria de Orçamento (Conof) da Câmara, a chamada “PEC do Estado de Emergência”, aprovada pelo Senado no começo da noite desta quinta-feira, dia 30, não retira o prazo de suspensão para empenho das emendas no dia 02 de julho. Não há menção à lei eleitoral nem no texto original da PEC e nem no substitutivo elaborado pelo relator, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), diz o consultor.
Procurado, Arthur Lira não respondeu. Hugo Leal também não atendeu às tentativas de contato da reportagem.