Bolsonaro mente ao mundo sobre ativistas mortos
Foto: MARLON COSTA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
O governo de Jair Bolsonaro respondeu à decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que concedeu medidas cautelares diante da morte de Bruno Pereira e Dom Phillips, na Amazônia, em junho. Em uma resposta enviada pelo Brasil ao órgão internacional, o governo omitiu o trabalho de indígenas nas buscas iniciais pelos dois homens e ignorou o fato de que o ex-servidor da Funai estava sendo alvo de ameaças.
A atitude do Executivo abriu uma nova denúncia contra o Brasil, já que representantes da sociedade civil alegam que tal gesto do governo poderia ser caracterizado como um descumprimento da decisão do órgão internacional. O grupo que lidera o processo é composto por entidades como Artigo 19 Brasil e América do Sul, o Instituto Vladimir Herzog, Alianza Regional por la Libre Expresión e Información, Repórteres sem Fronteiras, a Associação Brasileira De Jornalismo Investigativo, a Associação de Jornalismo Digital e o Washington Brazil Office.
Em 11 de junho, a CIDH concedeu medida cautelar no caso, determinando que o Estado brasileiro redobrasse seus esforços de busca pelas vítimas e garantisse a plena investigação dos fatos, implementando ações de não repetição das violações de direitos humanos constatadas.
O governo brasileiro, entretanto, respondeu à Comissão sugerindo que o caso estaria concluído com a localização dos corpos e a confirmação das mortes. “O estado brasileiro ressalta a seriedade com que foram realizados esforços com vistas à identificação do paradeiro dos senhores Bruno Pereira e Dom Phillips, enfatizando a atuação da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas, além dos órgãos vinculados ao governo federal”, disse.
“Ademais, nota-se que as devidas ações foram adotadas a fim de investigar os fatos que deram origem à medida cautelar em apreço”, afirma. “Neste sentido, destaca-se a existência de políticas públicas específicas com o objetivo de assegurar a pronta intervenção em casos de desaparecimento de pessoas, com vistas a oferecer respostas sobre seu paradeiro a seus familiares, atenuando seu sofrimento”, disse.
Num documento enviado ao órgão, o Executivo insistiu que “todos os esforços foram empreendidos para a localização dos desaparecidos”. “Quanto às ações adotadas para investigar os fatos, reitera-se que as forças de segurança pública fizeram todos os esforços cabíveis para que os beneficiários das medidas cautelares em questão fossem localizados”, afirmou.
O documento do governo e a resposta das autoridades foram contestados por entidades da sociedade civil, que responderam ao órgão internacional acusando Brasília de “descumprir” as medidas cautelares no caso Bruno e Dom.
As organizações apontaram problemas na investigação e alertaram para riscos de mais violência.
Na resposta protocolada pelas entidades que originalmente tinham solicitado a medida cautelar, as entidades afirmam que, “sem garantir a devida solução do caso, a manifestação do Estado brasileiro em si já representa um descumprimento das determinações da CIDH”.
Em um novo documento, elas mostram que, “desde o início das buscas até a fase de investigação, as autoridades estatais não têm empreendido esforços suficientes para a compreensão de todos os elementos que envolvem o caso e a responsabilização de todos os envolvidos”.
Segundo elas, além de confissões feitas pelos próprios suspeitos, os avanços obtidos nas investigações foram possíveis apenas com a colaboração de integrantes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e de indígenas da região. Mas, no documento entregue pelo governo para a Comissão, isso sequer é citado.
“Na resposta ao governo, as organizações também rechaçam a narrativa, vocalizada por diferentes autoridades brasileiras, de que a morte de Bruno Pereira seria resultado de um desentendimento e uma rixa pessoal com pescadores de comunidades do Vale do Javari”, afirmam as entidades.
Segundo elas, a posição não leva em conta o histórico de ameaças que Bruno Pereira vinha sofrendo e que já tinham sido denunciadas formalmente.
As entidades ainda criticaram o fato de as investigações até agora não trazerem quaisquer explicações sobre a morte de Dom Philips, tratada como um efeito colateral nas linhas investigativas. Isso, segundo eles, desconsidera o trabalho jornalístico de registro de crimes ambientais que o jornalista realizava na região.
“Ao pedir para que a medida cautelar siga aberta e que a CIDH continue exigindo que o Estado brasileiro investigue o caso plenamente, as solicitantes destacam que o governo federal também está desrespeitando a determinação da Comissão Interamericana ao não oferecer medidas para impedir que tragédias como a de Dom e Bruno ocorram com outras pessoas que atuam no Vale do Javari”, alertam.
Para elas, o governo brasileiro não apresentou informação sobre iniciativas capazes de garantir a proteção e segurança de quem segue trabalhando na região, está colaborando com as investigações e, também por isso, tem recebido inúmeras ameaças.
“A maioria dessas medidas consiste em esforços bastante iniciais, no sentido de serem estabelecidos canais de diálogo entre autoridades. Uma das medidas mais importantes, relativa ao reforço na segurança na região, tampouco se traduziu na adoção de ações concretas”, diz a resposta das organizações.
O documento ainda aponta que a lentidão e as falhas na investigação até agora “impediram a localização ou detenção de outras pessoas que possam estar envolvidas nos crimes e que seguem livres para ameaçar lideranças indígenas, ambientalistas e comunicadores”.
O informe aind destaca a ausência de denúncia formal no inquérito contra pessoas que ajudaram a ocultar os corpos, de investigação de políticos locais que se beneficiaram do crime e de indicação de eventuais mandantes do crime.
“A denúncia apresentada pelo MPF e aceita pela Justiça Federal cristaliza diversos aspectos que têm sido objeto de críticas por parte da sociedade civil quanto à incapacidade de as investigações efetivamente apontarem as motivações dos assassinatos de Bruno Araújo Pereira e Dom Philips, de promoverem a responsabilização de todos os envolvidos e de desmantelarem integralmente a estrutura criminosa que ameaça e mata as pessoas que defendem a Terra Indígena do Vale do Javari e seus povos – e que gerou o ambiente que resultou nesses dois assassinatos”, aponta o documento.
A constatação do grupo é que a investigação está “longe de se encerrar e muitas questões seguem em aberto, cabendo respostas das autoridades brasileiras”.
No documento, elas pedem que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleça canais de diálogo permanente e de cobrança do acompanhamento da cautelar com o governo brasileiro. Isso envolveria tanto em relação às investigações do crime quanto ao desenvolvimento de medidas de proteção do território da Terra Indígena do Vale do Javari e das pessoas ameaçadas no contexto de luta por direitos na região.
“A multiplicidade de casos envolvendo a morte de comunicadores e defensores de direitos humanos não se trata de algo pontual, de casos isolados”, diz.
“Trata-se de um nível de letalidade apurável e vinculado a situações em que opiniões políticas ou denúncias realizadas por esses profissionais confrontam pessoas e grupos que exercem o poder local. Assim, atentar contra suas vidas tem se mostrado uma estratégia recorrente no silenciamento de vozes e tolhimento da liberdade de expressão na região amazônica”, completam as entidades à CIDH.